Por Hermes C. Fernandes
“Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados.” Provérbios 31:8
Com quase dez anos de blogagem, já me acostumei a todo tipo de crítica, desde as mais ácidas até as consideradas “fogo amigo”. Porém, de um tempo para cá, há um tipo de crítica que tem me causado certo desconforto. Trata-se de um tipo de patrulhamento ideológico que reduz a importância de qualquer debate ao acusar o oponente de tentar ser “politicamente correto”. Afinal, o que caracterizaria tal posicionamento? E por que ele parece incomodar tanto? Haveria algum mérito ou demérito em ser politicamente correto?
Deixando de lado os falsos escrúpulos, proponho que analisemos o fenômeno. A começar pela constatação de que a língua não é um instrumento neutro. Não me refiro aqui aos sujeitos que se utilizam da linguagem, mas aos próprios vocábulos, bem como as estruturas linguísticas e suas entonações como que carregados de sentidos culturais e políticos.
Palavras nunca são apenas “palavras”, pois trazem consigo um peso que não pode ser ignorado. Elas podem edificar, como também podem destruir. Constroem pontes, mas também abrem abismos. Não é à toa que as Escrituras declaram que “a morte e a vida estão no poder da língua” (Provérbios 18:21). Tiago adverte: “Da mesma boca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não pode ser assim! Acaso pode sair água doce e água amarga da mesma fonte?” (Tiago 3:10-11). Paulo corrobora: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem” (Efésios 4:29). E Jesus arremata: “Digo-vos, pois, que de toda palavra fútil que os homens disserem, hão de dar conta no dia do juízo” (Mateus 12:36). Algum cristão sincero ousaria discordar destas passagens?
Portanto, não se trata de ser puritano, ou de querer ser politicamente correto, mas de ser coerente com o espírito do evangelho. Não me parece correto, por exemplo, usar palavras de baixo calão para menosprezar quem pense diferentemente de nós. Quando Jesus usou expressões como “geração adúltera” (algo próximo de fdp) não estava xingando pecadores, mas expondo a hipocrisia dos religiosos de sua época. Jamais o vimos referir-se aos homossexuais com palavras chulas como veados, bichinhas, baitolas ou mariquinhas, nem às prostitutas como putas, vadias, quengas ou coisa parecida. Pelo contrário, Jesus tratava a todos com dignidade.
Seria pedir muito que nos referíssemos a alguém como portador de necessidades especiais em vez de aleijado ou retardado, como dependente químico em vez de viciado, como homossexual em vez de bicha, como síndrome de down em vez de mongoloide, como afrodescendente em vez de crioulo, como umbandista em vez de macumbeiro? Seria pedir de mais que fôssemos, ao menos, educados? Não nos ocorre que usando determinadas palavras estejamos sendo cruéis e impingindo um sofrimento extra ao nosso semelhante?
Frequentemente, a mera menção de algum episódio envolvendo racismo, homofobia, sexismo ou xenofobia é desqualificada com a ridícula acusação de estarmos sendo politicamente corretos. Se tratar as pessoas com deferência significa ser politicamente correto, então, devo admitir minha culpa. E confesso que não me deixarei inibir pelo patrulhamento ideológico.
Acima de qualquer distinção ideológica ou doutrinária está o ser humano, imagem e semelhança de Deus, portanto, portador de dignidade intrínseca.
Os inimigos do “politicamente correto” alegam que tudo não passa de censura disfarçada, um atentado à liberdade de expressão. Ambos os lados se dizem vítimas da patrulha ideológica. Mas qual dos dois faz o maior número de vítimas? Quem busca policiar sua própria fala para não ofender seus semelhantes ou quem se acha no direito de despejar seu ódio e preconceito nos outros através de suas palavras?
O uso da língua em qualquer que seja o contexto é sempre político. Não há isenção. E como bem disse Jesus, “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34). Basta observar o que se diz para saber o que se pensa. Um coração tomado de preconceito não conseguirá disfarçar por muito tempo. Cada piadinha ou comentário despretensioso acabará por revelar preconceitos dissimulados. Não se trata de coibir a liberdade de expressão. Ninguém está impedido de dizer o que pensa. Todavia, há que se tomar cuidado com a maneira como se expressa, para que sua liberdade não seja motivo de constrangimento a quem quer que seja. Parafraseando Paulo, que nossa liberdade não seja motivo de tropeço a ninguém (1 Coríntios 8:9).
De fato, a palavra molda o mundo. Nossa relação com a realidade é mediada pela palavra. Por isso, o poema da criação nos mostra Deus fazendo perfilar todos os animais para que o homem lhes desse nome. Nomear é exercer poder. Quem nomeia dita as regras do jogo. Como disse Alicia Dillon, “a palavra tem o poder: de nos tornar empoderadas ou indefesas, de ser fonte de certeza ou de dor. Alguém que age como se não pudéssemos falar por nós mesmas ou se refere a nós por um nome que não reconhecemos está usando a palavra para nos machucar, para roubar nossa subjetividade, para apagar nossa existência. Então, para continuar existindo, respondemos, interpelamos, machucamos. Usar a palavra é negociar os termos de nossa própria existência.”[1]
Antes de classificar alguém ou um grupo, consideremos a maneira como gostaríamos de ser classificados. Como ensinou Jesus, “assim como quereis que os homens vos façam, do mesmo modo lhes fazei vós também” (Lucas 6:31). Esta é a regra de ouro que vale tanto para quem esteja à esquerda do espectro ideológico, quanto para quem esteja à direita.
Obrigado por este texto , pois através do mesmo vim entender o que significa "politicamente correto"
ResponderExcluirPoxa! Penso como o senhor , mas não sabia que eu era "politicamente correto" Achava que era uma demonstração de respeito ao próximo!!
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