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segunda-feira, outubro 11, 2021

A IGREJA NO ROUND FINAL

 

Por Hermes C. Fernandes

Imagine que você esteja devendo até o último fio de cabelo sem a menor condição de pagar. De repente, alguém lhe convida a participar de um jogo em que o prêmio não apenas pagaria sua dívida, mas lhe tornaria uma pessoa rica. O que você faria? Pois este é, basicamente o argumento de Round 6, série sul-coreana original da Netflix.

AVISO: A partir daqui, o texto tem spoiler. 

Tudo começa com uma abordagem numa estação de metrô. Um desconhecido lhe propõe um jogo aparentemente inofensivo. Você tem que escolher entre dois pequenos envelopes, um de cor azul, outro vermelho (algo semelhante às pílulas azul e vermelha do filme “Matrix”) .  Depois, como num jogo de bafo, ambos jogam suas cartas-envelopes no afã de virá-las. Quando você ganha, o desconhecido lhe dá uma quantia em dinheiro. Mas quando perde, você recebe uma tapa do rosto. No início, você se mostra relutante. Afinal, quem quer se esbofeteado? Mas depois, você conclui que vale a pena, visto que está endividado, e qualquer prêmio em dinheiro lhe ajudaria. O que você não sabe é que aquele estranho bem vestido é um recrutador, e que você está passando por uma triagem para participar de algo muito mais violento, porém, promissor. Com sua curiosidade instigada, você aceita participar do desafio. Ao chegar ao local (uma ilha misteriosa para a qual você é levado inconsciente), você se depara com centenas de pessoas que passaram pelo mesmo processo, e que, à sua semelhança, estão desesperadas com suas dívidas. O ambiente é lúdico, cheio de cores, nada ameaçador; e os jogos são inspirados em clássicas brincadeiras infantis. Porém, somente depois de aceitarem participar, você e os demais são informados de que os perdedores não sairão vivos. A partir daí, o que deveria ser um jogo motivado exclusivamente pela ganância, passa a ser também motivado pelo instinto de sobrevivência.  

A cada pessoa que morre, o pote de dinheiro (um cofre transparente gigante em forma de porco) vai enchendo mais e mais. O valor total do prêmio é de bilhões de wons, equivalente a mais de 200 milhões de reais. 

Inicialmente, a única coisa assustadora são as pessoas vestidas com um uniforme rosa choque que trazem em suas máscaras formas geométricas. Os que trazem o círculo são os operários que trabalham na organização das tarefas. Os que trazem os triângulos são os soldados responsáveis por manter a ordem e executar os perdedores. Os que trazem o quadrado são os supervisores. Há ainda uma figura mascarada misteriosa que controla tudo dos bastidores. Além dos chamados VIP’s que só surgem nos últimos episódios, com máscaras luxuosas, que assistem de camarote o desfecho dos jogos, apostando alto nos jogadores de sua preferência. 

As cenas são horripilantes.  Alguns acusam a série de estimular a violência e de conter gatilhos perigosos para quem tem pensamentos suicidas. De fato, a série não deveria ser vista por quem tem a mente fraca, muito menos por crianças ou adolescentes. Mas isso não tira da série os seus méritos, provocando-nos reflexões sobre a ambiguidade da natureza humana e sua condição existencial.  

Não há mocinhos ou bandidos. Todos são capazes de atitudes louváveis ou reprováveis. Nem mesmo o personagem que poderíamos considerar como protagonista da trama escapa a isso. Em nome da sobrevivência, ele é capaz de trapacear. 

Eu diria que a série é um tapa na cara de quem se arroga um poço de virtudes. E mais: ela expõe de maneira explícita as bases sobre as quais a sociedade capitalista está alicerçada.

Pergunto-me que papéis estariam sendo representados pelos homens uniformizados. Quem são os operários que garantem a manutenção do sistema? Quem são os soldados/algozes responsáveis pela manutenção da ordem? Quem são os supervisores?

Caberia ali alguma representação da igreja ou da religião? Qual tem sido o seu papel no jogo? Atribui-se a Napoleão Bonaparte as seguintes frases: “Religião é uma coisa excelente para manter as pessoas comuns quietas”; e: “a religião é aquilo que impede os pobres de matarem os ricos.” Seria este, de fato, o papel da religião? Seríamos os operários que trabalham para lubrificar as engrenagens da máquina social?  Era isso que Jesus tinha em vista quando anunciou a edificação de Sua igreja? Penso que não. Porém, os poderosos, os que estão no topo da pirâmide social, cooptaram a igreja e hoje a fazem trabalhar por seus intentos funestos. 

O sistema nos uniformizou. Roubou-nos a identidade. Transformou-nos em meros prontuários. Nossas mortes não passam de baixas. Nossa dor e sofrimento viraram espetáculo para quem assiste incólume, divertindo-se às nossas custas. 

Enquanto isso, os crentes almejam galgar novos patamares nesta pirâmide, deixando de ser operários para ser soldados/algozes, que matam em nome da fé em um deus perverso, oposto do Pai de Amor apresentado por Jesus. Triste sina. 

Nosso discurso só faz estimular a ganância, sem perceber o quanto isso alimenta o monstro prestes a nos devorar. 

Qualquer expediente é válido, desde que alimente a esperança do prêmio. Porém o custo é altíssimo. Custa a vida de quem amamos. Custa a nossa própria existência. 

Quantos ainda terão que morrer para que um projeto de poder avance em sua sanha genocida? Que efeitos colaterais estamos dispostos a enfrentar para que cheguemos ao topo da pirâmide? Engana-se quem pensa que somos VIP's. Somos meros peões neste tabuleiro cheio de bispos, reis e rainhas. Alguém precisa emperrar esta máquina mortífera antes que seja tarde demais.

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