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segunda-feira, outubro 01, 2018

O CÉU DOS BURROS - Parte 3



Por Hermes C. Fernandes

Dois jumentos papeavam descontraidamente no céu dos burros. Um veterano que havia sido montado por um profeta que graças a ele, por pouco não cometeu um desatino. O outro, novato, recém-chegado, porém, recebido com honras de chefe-de-estado. Ele havia conduzido ninguém menos que o Filho de Deus em sua entrada triunfal em Jerusalém. A mula de Balaão, como ficou conhecida, incumbiu-se de apresentar o jumentinho de Jesus a outros célebres burros que haviam sido coadjuvantes em grandes acontecimentos da história. Depois de lhe falar daquele sobre o qual marchou Absalão, o filho usurpador do rei Davi, apontou-lhe outro que se aproximava deles.

Sabe aquele que vem ali?

Qual? O que vem em nossa direção?

Exatamente. Permita-me apresentar-lhe.

Olá, amigos. Vejo que já se conhecem. Me dariam a honra de sua companhia? – disse o simpático jumento.

Por que não, velho amigo. Deixe-me apresentar a nova celebridade do céu dos burros. Este é o jumentinho que conduziu Jesus pelas ruas de Jerusalém.

Que prazer conhece-lo! Tive a honra de conduzir um dos seus mais importantes ascendentes até o trono antes ocupado por seu pai, Davi.

Refere-se ao sábio Salomão?

Ele mesmo!

Deve ter sido um evento e tanto.

Não tanto quanto conduzir o Salvador do Mundo... – respondeu.

Conta pra ele como foi – sugeriu a mula de Balaão.

O fato é que havia outro filho de Davi de olho no trono. Seu pai nem sequer havia morrido e ele já o usurpava.

–  Mas espera aí... Não foi Absalão que usurpou o trono de Davi?

–  Sim, mas ele não foi o único. Adonias, seu irmão, também tentou ocupa-lo ilegitimamente.

–  Por que “Ilegitimamente”?

Porque Davi o havia prometido ao filho de Bate-Seba, Salomão.

E o que com que Adonias quisesse passar a perna no próprio irmão?

É uma longa história. Mas vou tentar resumir pra você. Davi já estava velho e precisou da companhia e dos cuidados de uma linda jovem chamada Abisague. Quando Adonias bateu os olhos na menina, apaixonou-se. Mas ele manteve isso em segredo o quanto pôde. Para chamar a atenção da moça e poder requisitá-la como esposa, decidiu que era hora de conquistar o trono do seu próprio pai.

Que garoto louco esse, não? Quis o trono para poder ficar com a moça.

Acho que ele se deixou seduzir pelos seis p’s que geralmente seduzem os homens: poder, posse, prestígio, prazer, privilégios e pressa. Com poder, ele poderia requerê-la como esposa sem que ela pudesse recusar. Assim, ele teria a sua posse. Com prestígio, ele a impressionaria com o objetivo de garantir o seu prazer e, de quebra, desfrutaria de todos os privilégios do reino.

E onde fica o “p” de pressa?

Ele não se dispunha a esperar a morte de seu pai. Seria mais fácil tomar o trono de um velho moribundo, do que tentar toma-lo de um jovem robusto e sábio. Para isso, ele tratou de arregimentar soldados que abraçassem a sua causa. Pôs cinquenta deles correndo diante dele. Cercou-se de carros e cavaleiros.

Deve ter sido um espetáculo.

Sim, exatamente isso. Ele queria impressionar não apenas a mulher a quem desejava desesperadamente, mas também a todo o povo.

Coitado de Davi!

Mas ele teve a sua parcela de culpa nisso.

Como assim? Ele estava velho, doente, acamado. O que ele poderia fazer para evitar isso?

Mas nem sempre ele foi velho, doente e acamado. A verdade que Adonias era um menino mimado. Seu pai nunca lhe havia dito um “não”. Bastava que quisesse qualquer coisa e era prontamente atendido. é que dá nunca ser capaz de contrariar um filho...

Isso Imagino que Joabe, o mais fiel dentre os generais de Davi, tenha contido esta insurreição como fez com a promovida por Absalão.

Engano seu, amigo. Desta vez, Joabe debandou. Talvez por achar que Davi já estivesse velho e que, por isso, não valeria a pena lutar por seu trono. Nem sempre quem foi fiel lá trás, segue sendo fiel a vida toda. O desafio é ser fiel até a morte. A verdadeira fidelidade não tem prazo de validade.

Assim como foi Jesus... obediente até morte e morte de cruz. - Sim. Você, melhor do que eu, sabe que o mais importante descendente de Davi abriu mão de todos os p’s que citei agora pouco por um único “p”: o de propósito.

Ele foi fiel a este propósito até o fim. Abriu mão do poder não usurpando ser igual a Deus. Abriu mão do prestígio ao nascer numa manjedoura. Abriu mão da posse, não fazendo caso nem da túnica disputada pelos soldados que o crucificaram. Abriu mão dos privilégios, fazendo-se servo de todos. Abriu mão da pressa, desdenhando da oferta do diabo no deserto. Abriu mão de qualquer prazer para se tornar no motivo de prazer de seu Pai. Este era o supremo propósito que fez com que suportasse tudo fielmente até o fim, mesmo tendo sido traído, negado e abandonado pelos seus.

Acho que você resumiu bem. - Devo supor que todos debandaram e que Davi ficou só, certo? - Felizmente, sempre fica um remanescente. Entre esses, estavam o sacerdote Zadoque e o profeta Natã.

Natã? Aquele que confrontou Davi quando ele pecou? - Justamente ele. Ter confrontado o rei não significa que ele fosse desleal. Pelo contrário. Os verdadeiros amigos dizem na cara o que outros só têm coragem de dizer pelas costas. E foi Natã quem procurou a Bate-Seba e a informou sobre o que estava acontecendo, aconselhando-a a procurar a Davi, cobrando-lhe o cumprimento da promessa de que Salomão seria o seu sucessor.

E qual foi a reação do rei?

É aí que eu entro na história. Davi ordenou que pusessem Salomão sobre mim e o fizessem entrar em Jerusalém ao som de trombetas e aos gritos de “Viva o rei Salomão!”

Que contraste! Enquanto Adonias entrou na cidade com um batalhão de homens, carros e cavaleiros, Salomão entrou montando num jumentinho – comentou a mula de Balaão.

Sim, caros amigos. Foi a vitória da humildade sobre a arrogância, da sabedoria verdadeira sobre a vaidade. Salomão entrou na cidade sobre o mesmo jumento que conduziu seu pai.

Quer dizer, então, que você era o jumento de Davi?

Sim. Tive a honra de ser montado pelos dois mais importantes reis de Israel. Mas isso não é nada comparado a ter sido montado pelo rei de todas as nações.

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