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terça-feira, setembro 11, 2018

O CÉU DOS BURROS - Parte 1



Por Hermes C. Fernandes

O céu dos burros estava agitadíssimo, pois acabara de chegar uma figura ilustre. Todos abriam alas para que ele passasse. Um dos jumentos mais antigos ali parecia alheio à sua chegada. Curioso, perguntou a um colega:

- Quem é a figura? Por que todos o estão bajulando assim?

Pelo que respondeu seu colega:

- Você não sabe? É o jumentinho usado por Jesus para entrar em Jerusalém.

O burro velho, sentindo-se enciumado, ficou à espreita, esperando a oportunidade para abordar o recém-chegado jumentinho.

Na primeira chance, aproximou-se e se apresentou:

- Olá, amigão. Então você é o famoso jumentinho que carregou o Filho de Deus pelas ruas da Cidade Santa?

- Sim, sou eu. E o senhor, quem é?

- Nunca ouviu falar de mim? - indagou indignado.

- Desculpe-me, senhor. Mas sou novo por aqui. Acabei de chegar. Mas ficaria muito contente se o senhor pudesse se apresentar.

- Eu sou a mula que carregou o profeta Balaão.

- Ah sim, já ouvi falar a seu respeito lá embaixo. O senhor é muito famoso entre os burros. Todos o consideram uma lenda.

- Eu, uma lenda? Assim você me deixa constrangido. Sou apenas uma mula que serviu por anos a um profeta.

- Mas todos dizem que graças ao senhor, a vida de Balaão foi poupada.

- Ora, apenas cumpri o meu dever. Ele insistia num caminho que desagradava a Deus. Por isso, tive que tomar providências. Se ele prosseguisse em sua rebeldia, o anjo que apareceu à nossa frente com uma espada desembainhada o mataria.

- Ele deve ter sido muito grato ao senhor por sua lealdade, não é mesmo?

- Quem dera... Ele nem sequer percebeu que eu o estava salvando. Em vez disso, quando me desviei daquela rota, ele me bateu. Quando espremi seu pé contra o muro sem querer, ele me espancou. E quando empaquei de vez, ele me deu a maior surra que recebi em minha vida.

- E o senhor não fez nada? Deixou por isso mesmo?

- Você não ficou sabendo o que me ocorreu naquele dia? Deus abriu minha boca para que eu falasse diretamente com ele.

- Sério? Um burro falante? E o que o senhor lhe disse?

- Disse-lhe que não era justo que ele me espancasse daquela maneira, pois, afinal, até aquele dia eu o havia servido lealmente, sem jamais ter empacado. Deus abriu minha boca, porque seus olhos permaneciam fechados. Ele não conseguia enxergar o anjo à nossa frente pronto para decepá-lo.

- E o que o anjo fez, afinal?

- Você não vai acreditar se lhe contar. O anjo saiu em minha defesa. Disse-lhe que graças a mim, sua vida foi poupada.

- Uau! Que honra! Um anjo saindo em defesa de um animal de carga como o nós.

- E quanto a você? O que fez para que todos lhe dessem tanta importância?

- Eu? Fiz nada não. Apenas transportei o Filho de Deus, enquanto a multidão o aclamava como o tão esperado Rei dos Judeus. 

- Espera aí... Você não sabia o que o esperava no dia seguinte?

- Nem desconfiava. O povo parecia tão alegre de recebe-lo.

- Caso não saiba, aquele mesmo povo que gritava “Hosanas!”, um dia depois estaria gritando no pátio do palácio de Pôncio Pilatos: “Crucifica-o!” No mínimo, você deveria ter feito o mesmo que eu fiz. Se houvesse empacado, você teria salvado a vida do Filho de Deus. Sinceramente, não entendo a razão de lhe darem tanto valor aqui. Você falhou! Você foi negligente. Mesmo apanhando injustamente, eu fiz a minha parte.

- Mas você viu o anjo com a espada na mão. Você sabia o que o esperava. Eu não. Nenhum anjo apareceu para mim. Eu só ouvia os gritos, os louvores, e via o tapete improvisado que se estendida diante de mim. Como eu poderia supor o que aconteceria depois?

- Por um acaso, Jesus não trazia um chicote nas mãos?

- Sim, ele tinha um chicote. Mas não o usou em mim. Em vez disso, usou-o para expulsar os cambistas que negociavam no templo.

- O que vocês foram fazer no templo? Ele não deveria ter se dirigido ao palácio para depor Pilatos e Herodes e assumir o trono deixado vago por Davi? Não era este o plano?

- Acho que o senhor está muito mal informado. Quando atravessamos os portões da cidade, havia uma bifurcação. Eu até imaginei que iríamos para o palácio. Mas Ele preferiu ir para o templo.

- Então está explicado! Foi por isso que as mesmas pessoas que o recepcionaram na porta da cidade, pediram que as autoridades o crucificassem no dia seguinte. Ele traiu suas expectativas.

- Não posso discordar do senhor. Mas acho que tanto eu quanto o senhor trabalhamos por um mesmo propósito.

- Que propósito seria esse, afinal? Eu fiz a minha parte. Impedir que o pior acontecesse ao profeta. Você, não. Simples assim. Mesmo que não empacasse como eu, você bem que poderia ter se rebelado como geralmente os jumentos fazem, e em vez de marchar para o templo, marchar para o palácio.
- Mas se eu fizesse assim, Ele não teria morrido na cruz.

- Exatamente. E você teria sido um verdadeiro herói.

- Perdoe-me, mas o senhor está equivocado. Ele tinha que morrer na cruz para salvar a humanidade e redimir toda a criação. Era este o propósito. E o senhor contribuiu com ele ao impedir que o profeta Balaão prosseguisse em seu caminho.

- Como assim?

- Para onde Balaão estava indo? O que ele iria fazer naquele dia?

- Ouvi quando o anjo disse para que ele não amaldiçoasse o povo de Israel como lhe havia sido pedido por um rei chamado Balaque.

- Percebeu a conexão? Imagine se o anjo não se opusesse a ele, e se o senhor não empacasse, ele lançaria uma maldição sobre o povo de onde viria o Messias, o Salvador do Mundo, que deveria morrer na cruz pela restauração de todas as coisas.

- Agora as coisas começam a fazer sentido. Quer dizer então que eu tive que empacar para que lá na frente você tivesse que prosseguir. Eu empaquei para salvar a vida do profeta. Você prosseguiu para salvar a humanidade. Um foi poupado para que o outro tivesse que morrer e assim, todos fossem poupados da destruição eterna. Quer saber de uma coisa? Que bom que você não sabia o que o esperava no dia seguinte. Porque, se soubesse, talvez fizesse o que eu fiz, e assim, pusesse tudo a perder.

- Sim. O senhor está coberto de razão. Deus me abençoou com a bênção da ignorância. E graças a esta ignorância, prossegui em minha marcha para que o propósito de Deus se cumprisse.


* Moral da estória: Não meça a lealdade de ninguém pela sua própria lealdade. Cada qual contribui à sua maneira na execução dos propósitos divinos. 


* Esta estória continua em breve. Aguarde. 

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