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sábado, agosto 04, 2018

Universos Paralelos



Por Hermes C. Fernandes

Imagine se pudéssemos viajar no tempo, e impedir que alguns fatos ocorressem. E se viajássemos ao tempo de nossos avós paternos, e acidentalmente impedíssemos que eles se conhecessem? Logo, nosso pai não nasceria, o que, conseqüentemente impediria nosso nascimento. Então, como poderíamos ter viajado no tempo, se jamais teríamos nascido? Trata-se de um paradoxo. Os defensores da possibilidade de viagens no tempo dizem que isso criaria um universo paralelo, ou uma realidade alternativa. Seria como se o rio do tempo se bifurcasse, formando, então, dois leitos distintos. Numa realidade, continuaríamos a existir normalmente, enquanto que, na outra jamais teríamos nascido.

No filme “De volta para o futuro” acontece algo semelhante. O protagonista do filme é enviado ao passado, provocando uma cadeia de eventos que inviabilizaria seu nascimento no futuro. Entre tais acontecimentos inusitados, sua mãe se apaixona por ele, sem perceber que ele era seu próprio filho. De repente, ele percebe que na fotografia que trouxe do futuro, ele e seus irmãos começam a desaparecer, indicando assim que seu futuro fora comprometido. Como se não bastasse, durante um baile de escola em que ele se apresenta com a banda, ele mesmo começa a desaparecer. Se ele jamais nasceu, ele não poderia estar ali. Ele agora dispõe de pouquíssimo tempo para conseguir reverter a situação, promovendo um encontro entre sua mãe e seu pai. É claro que tudo isso não passa de ficção científica (e das boas!). Não é à toa que este é um dos meus filmes prediletos.

Mas vamos exercitar um pouco a nossa imaginação… Imagine que Deus, em Sua infinita sabedoria, antes dos tempos eternos, tinha diante de Si todas as possibilidades disponíveis. Cada nova decisão que tomássemos na vida abriria um leque de infinitas possibilidades. De repente, Deus bate o martelo e decreta qual seria a cadeia de acontecimentos, e como estes se entrelaçariam, conectando assim as histórias de todas as suas criaturas, formando a grande malha da História.

A soberania de Deus não prescinde da liberdade humana. Assim como todos os afluentes de um rio deságuam na calha principal, e esta, por sua vez, deságua no oceano, todas as decisões humanas cooperam na execução do propósito divino.

As águas não vão do rio principal para os afluentes, mas destes para aquele, e desse para o oceano. Mas de onde vêm as águas? Das nascentes? Sim. É possível identificar as nascentes de cada rio. Porém, antes de brotar nas nascentes, de onde provêm as águas? Da chuva. Através da chuva, as águas penetram a terra, formando os lençóis de água, e estas encontram seu caminho, fluindo por canais subterrâneos até encontrar um manancial por onde brotam na superfície. E as águas da chuva, de onde vêm? Da evaporação das águas da superfície, principalmente do oceano. Percebe aqui o complexo ciclo pelo qual passam as águas? Da mesma maneira a soberania divina e a responsabilidade humana fluem numa espécie de sinergismo.

São como passos de uma dança. Um passo pra lá, outro pra cá. Mas quem conduz a dança é o Senhor. Às vezes nos atrapalhamos, atravessando o ritmo, porém Ele, pacientemente, nos ajuda a reencontrar a batida.

Leia com atenção:
“Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR, que o inclina a todo o seu querer.” Provérbios 21:1 
Somente um Deus soberano poderia conviver com a liberdade humana, sem sentir-se ameaçado, sem que esta pusesse em risco os Seus planos. Não se trata de livre arbítrio propriamente, mas de livre agência. Sem liberdade não pode haver responsabilidade. Não posso responsabilizar-me por decisões que não são minhas. Ainda que tais decisões tenham sofrido inúmeras influências, sejam sociais, espirituais, culturais, emocionais, genéticas, hormonais, sou responsável por elas.

Há rios mais caudalosos que outros; uns são calmos e serenos, outros exibem correntezas selvagens. Uns correm em planícies, outros em terrenos acidentados, produzindo cachoeiras exuberantes. Uns têm calhas sinuosas, cheias de curvas, outros seguem em linha quase reta. Uns cristalinos, outros barrentos. Uns gélidos, outros mornos. Uns largos, outros estreitos. Uns rasos, outros profundos. Uns repletos de vida, outros estéreis. Mas todos tributam suas águas ao oceano. Uns desembocam direto nele. Outros em rios maiores. Mas independente de qualquer de suas características, e dos caminhos que percorrem, suas águas inevitavelmente terminarão no oceano. A gravidade garantirá isso.

Os homens possuem tecnologia capaz de desviar o curso de rios, ou mesmo de represar suas águas. Porém nada disso é suficiente para impedir que no fim cada gota de suas águas seja agregada às águas do oceano. Os homens também têm o poder de poluir seus leitos e comprometer a pureza de suas águas. Mas nem isso pode impedir que cheguem ao seu destino, onde suas impurezas serão diluídas. Nada há que façamos que seja capaz de frustrar os planos de Deus. Mesmo que o rio seja desviado de seu curso natural, no fim, ele terá que prestar tributo ao oceano.

Antes de bater o martelo e decretar cada acontecimento na história, Deus considerou todas as implicações envolvendo cada um deles, sua seqüência e conexões, seus riscos e seus efeitos colaterais a curto, médio e longo prazo. Todas as alternativas foram consideradas. Ele, porém, optou por aquela que resultaria em maior glória ao Seu nome, conquanto resultasse em maior benefício para Suas criaturas. Aquele que garantiria que todas as coisas cooperassem para o bem daqueles que O amassem, e que fossem chamados segundo o Seu propósito (Romanos 8:28).

A maneira como cada criatura reagiria aos eventos foi prevista, e então, determinada. Jamais houve plano B. Mesmo concedendo plena liberdade às Suas criaturas, por conhecer o futuro, Ele sabia de antemão como elas responderiam. Por isso, Ele jamais foi surpreendido. Ao prever, Ele disse amém, e Seu amém soa como decreto. “Que assim seja!”

Ele não precisou consultar ninguém, senão Sua própria vontade. Veja o que diz Paulo, o apóstolo que mais se debruçou neste tema:
“Descobrindo-nos o mistério da sua vontade, segundo o seu beneplácito, que propusera em si mesmo… conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade.” Efésios 1:9,11  
Ele decretou os fins, estabelecendo os meios pelos quais tais fins seriam atingidos. Isso, porém, não isenta Suas criaturas de responsabilidade pelos seus atos. Apesar de crermos piamente que Deus tenha o controle de todas as coisas, não temos o direito de agir de maneira inconsequente. Num jogo de xadrez, o jogador que consegue prever os próximos movimentos de seu oponente tem evidente vantagem sobre ele. Antes de qualquer movimento, ele considera todas as possibilidades. Se uma peça será movida numa ou noutra direção. Imagine Deus, que conhece não apenas os próximos movimentos, mas todos os movimentos, do início ao fim.

Podemos distinguir, para fins didáticos, a vontade de Deus em três, a diretiva, conhecida como ‘boa, perfeita e agradável’ e revelada em Seus mandamentos, a permissiva, e a decretiva, que está sobre ambas. Mesmo que algo não corresponda à Sua perfeita vontade, Deus pode permitir que ocorra, e que por fim, até aquilo colabore para que Seu propósito seja alcançado. Um exemplo clássico disso foi o que aconteceu com Jonas. A vontade diretiva de Deus era que ele fosse para Nínive. Porém, Jonas rebelou-se e tomou um navio para Társis. É claro que Deus não foi pego de surpresa. Antes mesmo da fundação do mundo, Deus sabia que o profeta O desobedeceria. Previu esse movimento e o decretou. Quero deixar claro que entre a presciência e o decreto não há intervalo, mas fluem concomitantemente. O decreto não é fruto da presciência. Os atributos de Deus agem harmoniosamente. Ele decreta prevendo, e prevê enquanto decreta.

Por não ser pego de surpresa, Deus já havia feito provisão. O grande peixe que engoliu o profeta rebelde não foi um plano tapa-buraco. Deus jamais apelou ao improviso. Quem faz provisão, jamais precisa fazer improviso. No final, Jonas estava exatamente onde Deus determinara que estivesse. Portanto, vemos neste episódio a maneira como a vontade diretiva, permissiva e decretiva se harmonizam. Ao ordenar que Jonas fosse para Nínive, Deus revelava Sua vontade diretiva. Ao permitir que ele desobedecesse, vemos Sua vontade permissiva. Ao conduzir tudo de maneira tal que Jonas terminasse onde deveria estar, vemos em ação Sua vontade decretiva.

Vontade permissiva nada tem a ver com permissividade, ou licença pra pecar. Nem quer dizer que Deus Se dobre à nossa vontade. Vontade permissiva significa que Ele permite que tomemos nossa própria decisão, mesmo que esta contrarie Sua vontade diretiva, porém tudo dentro do escopo de Sua vontade decretiva.

Sobre isso diz Paulo em seu discurso em Icônio:
“O qual nos tempos passados deixou andar todas as nações em seus próprios caminhos. E contudo, não se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos lá do céu, dando-vos chuvas e tempos frutíferos, enchendo de mantimento e de alegria os vossos corações.” Atos 14:16-17 
É evidente que não enxergamos a realidade da mesma perspectiva de Deus. Conforme Ele declarou:
“Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o SENHOR. Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos.” Isaías 55:8-9 
Quando desobedecemos à Sua vontade diretiva, sofremos as conseqüências, porém não podemos pôr em risco a execução do plano divino. É como se ‘criássemos’ uma realidade alternativa, um universo paralelo. Usando a metáfora do rio, um novo braço se abre e se desvia do leito principal. Ora, naturalmente são os rios afluentes que convergem para o leito principal, e não vice-versa. Querer fazer a transposição do rio de Deus é um atrevimento desmedido. Em Sua infinita misericórdia, Deus pode fazer-nos uma concessão, permitindo-nos tal desvio de rota. Porém, lá na frente, aquele rio desertor acabará convergindo novamente para o leito principal. Em outras palavras, o tal universo paralelo que criamos acabará sendo reunificado ao universo criado por Deus.

Este reencontro entre a vontade de Deus e a nossa nos remete ao fenômeno conhecido como “encontro das águas”, que ocorre na confluência entre o Rio Negro, de águas escuras, e o Rio Solimões, de águas barrentas. Por mais de seis quilômetros as águas dos dois rios correm lado a lado sem se misturar. Mas chega um momento em que elas finalmente se mesclam. Esse fenômeno acontece em decorrência da diferença entre a temperatura e densidade das águas e, ainda, à velocidade de suas correntezas: o Rio Negro corre cerca de 2 km/h a uma temperatura de 28°C, enquanto que o Rio Solimões corre de 4 a 6 km/h a uma temperatura de 22°C.

O tal universo paralelo não é outra coisa senão a projeção de nossa consciência rebelada. Trata-se de fazer as coisas do nosso jeito. Por um momento, Deus permite que experimentemos tal autonomia, a fim de que percebamos a gravidade de nosso erro, nos arrependamos, e retomemos o projeto original.

Outro exemplo que podemos extrair das páginas sagradas é o de Abraão. Durante anos, o patriarca manteve sua fé na promessa que Deus fizera de dar-lhe um filho. A velhice chegou, mas a promessa não se cumpriu. Pelo andar da carruagem, já não restava qualquer perspectiva. Tudo indicava que era o fim da estrada. Será que Deus Se enganara? Ou será que Ele Se esquecera? No universo projetado pela consciência de Abraão, o fim era iminente. Não havia esperança. Porém, o velho patriarca resolveu romper com a desesperança que o assombrava. Veja o que Paulo diz:
“O qual, em esperança, creu contra a esperança, tanto que ele tornou-se pai de muitas nações, conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua descendência.” Romanos 4:18 
O que se podia esperar de um ancião centenário? Ainda por cima, casado com uma mulher que já tinha noventa anos. Só restou-lhe crer contra a esperança, que nada mais é do que crer contra as evidências. Crer contra a esperança é como fornecer a matéria prima para a criação de um universo paralelo, só que desta feita, não se trata de um universo, projeção de nossas perspectivas, mas de um universo, fruto do amor e dos cuidados de Deus.

No momento em que ousamos crer contra a esperança, ocorre algo semelhante ao fenômeno conhecido como pororoca, em que o rio Amazonas se encontra com as águas do oceano. Nosso leito é invadido pelas águas do oceano do Espírito. Ondas surgem deste majestoso encontro. Se tudo indicava que direção a vida nos levava, de repente, subvertemos o curso da história, enfrentamos o fluxo natural, e tornamo-nos cooperadores de Deus.

Não há como mudar o passado, mas apenas ressignificá-lo, reinterpretando-o à luz do que vivemos no presente. Porém, entre o presente e o futuro pode haver uma bifurcação. Há um futuro que segue o fluxo natural, aquilo que se pode esperar, julgando pelo andar da carruagem. Mas há um futuro alternativo, que irrompe quando nos atrevemos a crer contra a esperança. Este é o futuro decretado por Deus.

Quando Abraão foi testado, ele cria de tal maneira no futuro que se insinuava ante seus olhos, que não duvidou que Deus poderia ressuscitar seu filho, caso este fosse sacrificado. Isaque era sua capsula do tempo, que levaria seu DNA para o futuro, e disseminaria sua fé para todas as nações e gerações. Mas nem sempre Abraão creu contra a esperança. Houve um momento em que o velho patriarca titubeou. Ao perceber que a promessa tardava a cumprir, Abraão quis dar uma mãozinha a Deus, e acabou criando outro universo paralelo, onde teve que conviver com os efeitos colaterais de sua decisão. O fruto desta decisão foi o nascimento de Ismael, seu filho com a escrava egípcia Hagar. Partiu de sua própria esposa, Sara, a sugestão de tomar Hagar por mulher, a fim de que esta lhe desse um descendente. Embora não fosse esta a vontade diretiva de Deus, foi-lhe permitido incorrer nesta precipitação. Lá na frente, Abraão teve que despedir Ismael, pois de acordo com Deus, Isaque, o filho da promessa, não poderia herdar juntamente com Ismael, o filho do improviso. Os dois leitos tiveram que ser separados e correr paralelos até hoje, posto que os descendentes de Isaque (Israel) jamais conviveram pacificamente com os descendentes de Ismael (os Árabes).

Certamente que um dia eles se reencontrarão, assim como se deu entre Jacó e Esaú. Mas até lá, muitas águas vão rolar. Muito do que ambos os povos têm sofrido poderia ser evitado se tão-somente Abraão recusasse dar ouvidos à sugestão de Sara, sua mulher, mantendo-se firme à espera da promessa.


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