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quarta-feira, janeiro 10, 2018

E se Deus lhe desse carta branca para fazer o que quisesse?


Por Hermes C. Fernandes

Assim que ungiu Saul a rei de Israel, Samuel o advertiu que ao se afastar dele, três grupos distintos cruzariam o seu caminho naquele mesmo dia.[1]  O primeiro grupo formado por apenas duas pessoas o encontraria junto ao sepulcro de Raquel e de maneira sutil o acusaria de haver falhado em recuperar as jumentas que seu pai havia perdido, e de haver se tornado no motivo de sua aflição.

Geralmente, este grupo é rápido no gatilho. Pessoas prontas a nos acusar são sempre as primeiras a se apresentar. Paulo os identifica como “mensageiros de Satanás” que surgem do nada para nos esbofetear, isto é, jogar em nossa cara nossas falhas (2 Coríntios 12:7). O tormento que produzem é comparado ao provocado por espinhos dilacerantes em nossa carne.  E o pior é que não dá para escapar de suas investidas. Não há oração capaz de nos livrar deles. Resta-nos tão somente refugiar-nos na suficiência da graça

Não foi em vão que aqueles homens escolheram o sepulcro de Raquel como cenário onde encontrariam Saul.  Saul era da tribo de Benjamim, talvez a mais desprezada tribo de Israel, devido ao fato de que em seu parto, Benjamim causara a morte de sua própria mãe, Raquel. Os membros da tribo de Benjamim carregavam a culpa de descenderem daquele que causou a morte da esposa predileta de Jacó. Por ironia do destino, justamente aquela tribo proveria o primeiro rei de Israel. Assim como Benjamim teve que carregar aquele estigma o resto de sua vida, Saul teria que carregar a culpa de ter falhado e decepcionado a seu pai.

O sepulcro de Raquel era o triste lembrete da dor e da perda provocadas pelo nascimento de Benjamim. Talvez por isso, Jacó tenha escolhido ser enterrado ao lado de Lia, sua primeira esposa e não de Raquel, a que ele realmente amou e cujo dote lhe custou catorze anos de trabalho.

O “sepulcro de Raquel” representa em nossa vida aqueles momentos cruciais em que temos que escolher o que deve sobreviver e o que deve ser sacrificado. Toda escolha implica renúncia. Raquel preferiu morrer para que Benjamim fosse poupado, mesmo sabendo que ele teria que carregar esta culpa o resto de sua vida.

Quantos já não temos machucado ao fazer nossas escolhas? Quanta frustração geramos nas pessoas a quem amamos? Quantos “jumentos” perdidos foram achados por outros? Quantas vezes deixamos de ser motivos de orgulho e alegria para nos tornarmos motivo de queixa e decepção? Falhamos como pais, como filhos, como irmãos, como cônjuges, como amigos. 

O que fazer ante a esta realidade? O mesmo que Saul fez:  seguir jornada. Ou como disse Paulo: “Deixando as coisas que para trás ficam, avanço para as que estão diante de mim...” (Filipenses 3:13).

Se os jumentos já foram encontrados, a busca de Saul se encerrou. A missão que recebera de seu pai era apenas o pretexto usado por Deus para que Saul encontrasse seu próprio destino. Portanto, o extravio dos jumentos foi um prejuízo necessário e temporário que resultaria num ganho infinitamente maior. Por isso, ao anunciar a Saul que eles haviam sido encontrados, Samuel lhe disse: "O que é isso diante de tudo o que é desejável em Israel e que Deus reservou para você e sua família?" 

O que não dá é ficar lamentando a vida inteira sem se aperceber do propósito maior por trás dos fatos.  Algumas feridas, o tempo e a graça se encarregarão de cicatrizar. Saul estava certo de que a aflição que causara ao coração de seu pai eventualmente cessaria. O que bem que estava por vir compensaria toda angústia que provocara, ainda que involuntariamente.

Saul prosseguiu sua jornada, indiferente ao que aqueles homens diziam. Aliás, eles não lhe disseram nada que já não soubesse.

O segundo grupo que cruzou seu caminho era formado por três homens que iam ao encontro do Senhor em Betel e levavam consigo suas ofertas. Ao encontra-lo, a primeira coisa que fazem é perguntar-lhe como ele estava. Além de demonstrar preocupação com seu estado atual, um deles lhe oferece pão. O profeta lhe deixou de sobreaviso de que ele não rejeitasse aquele suprimento. Para cada dedo em riste, há mãos que se estendem para nos ajudar. Para cada pessoa que nos encontra no sepulcro de Raquel, há quem nos encontre a caminho de Betel. São estes que nos trazem provisão, seja de ordem material, emocional ou espiritual.

Se o primeiro grupo representava o passado, o segundo representava o presente.

O principal compromisso de Deus é com a execução de Seus propósitos. Mas isso não se sucederá sem que se garanta a manutenção da vida. Por isso, antes de pedir que venha  o Seu reino e seja feita a Sua vontade, Jesus nos ensinou a pedir que o pão nosso de cada dia nos seja dado HOJE. Buscamos em primeiro lugar o Seu reino e a Sua justiça, mas na certeza de que as demais coisas nos serão acrescentadas. E para tal, Ele usa canais sempre dispostos a serem bênção na vida dos outros. Quem sobe a Betel para buscar ao Senhor, tem que está disposto a encontra-lo no próximo. O Deus revelado no Evangelho escolheu ser amado no próximo. Aqueles homens poderiam ter agido como o sacerdote e o levita da parábola, que por estarem a caminho do templo, não se dignaram a atender o moribundo encontrado no caminho. Cada um estava preocupado em garantir que chegariam a tempo para cumprir sua escala no culto. Não podemos usar Deus como desculpa para a nossa indiferença. Se as mãos que se estendem a Deus em louvor não forem as mesmas que se estendam ao próximo em amor, qualquer gesto de adoração será nulo.

Não perca tempo dando ouvidos a quem lhe acusa. Prefira escutar atentamente aos que ao lhe encontrarem no caminho demonstrem preocupar-se com você através de uma simples pergunta: como você está?

Se há quem se preocupe com os bens perdidos, há quem se preocupe com você, e que se dispõe a lhe ouvir em vez de lhe acusar. 

O terceiro e último grupo com que Saul se encontrou naquele dia representava o futuro. Cada um dos seus componentes trazia instrumentos usados para louvar a Deus, e enquanto caminhavam, profetizavam. Saul foi orientado por Samuel a misturar-se com eles. Não deu outra coisa: ele também começou a profetizar. Seu coração foi transformado. Ele já não era o mesmo homem que saíram em busca dos jumentos perdidos de seu pai, mas o homem escolhido por Deus para ocupar o trono de Israel. Somente alguém que tenha passado por esta metamorfose poderia receber de Deus carta branca para fazer o que bem desejasse.

"Faze o que achar melhor, porque Deus é contigo!" (1 Samuel 10:7b). Somente corações transformados recebem este voto de confiança da parte de Deus. 

Paulo, xará de Saul,[2] nos orienta a que sejamos cheios do Espírito Santo falando entre nós com salmos, hinos e cânticos espirituais.[3] Ninguém será transformado naquilo que está destinado a ser enquanto se mantiver isolado. A transformação feita por Deus, mesmo sendo de caráter subjetivo e individual, ocorre no contexto coletivo.  Precisamos caminhar ao lado de quem vislumbra o futuro, desafiando-nos a ser melhores a fim de estarmos preparados para aquilo que ele nos reserva. Os representantes do passado, passam por nós. Os representantes do “aqui e agora” cruzam nosso caminho, trazendo-nos provisão e encorajamento. Mas é na companhia dos representantes do futuro que devemos prosseguir em nossa jornada.




[1] 1 Samuel 10:1-24
[2] Saul e Saulo são variações do mesmo nome. Engana-se quem pensa que Deus mudou o nome de Saulo para Paulo. Não há menção disso nas Escrituras. Paulo simplesmente é a variante grega do nome Saulo.
[3] Efésios 5:18-19

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