Por Hermes C. Fernandes
Assim que ungiu Saul a rei de Israel, Samuel o advertiu que
ao se afastar dele, três grupos distintos cruzariam o seu caminho naquele mesmo
dia.[1] O primeiro grupo formado por apenas duas
pessoas o encontraria junto ao sepulcro de Raquel e de maneira sutil o acusaria
de haver falhado em recuperar as jumentas que seu pai havia perdido, e de haver
se tornado no motivo de sua aflição.
Geralmente, este grupo é rápido no gatilho. Pessoas prontas
a nos acusar são sempre as primeiras a se apresentar. Paulo os identifica como “mensageiros
de Satanás” que surgem do nada para nos esbofetear, isto é, jogar em nossa cara
nossas falhas (2 Coríntios 12:7). O tormento que produzem é comparado ao provocado por espinhos dilacerantes
em nossa carne. E o pior é que não dá
para escapar de suas investidas. Não há oração capaz de nos livrar deles.
Resta-nos tão somente refugiar-nos na suficiência da graça
Não foi em vão que aqueles homens escolheram o sepulcro de
Raquel como cenário onde encontrariam Saul. Saul era da tribo de Benjamim, talvez a mais
desprezada tribo de Israel, devido ao fato de que em seu parto, Benjamim causara
a morte de sua própria mãe, Raquel. Os membros da tribo de Benjamim carregavam
a culpa de descenderem daquele que causou a morte da esposa predileta de Jacó. Por
ironia do destino, justamente aquela tribo proveria o primeiro rei de Israel. Assim
como Benjamim teve que carregar aquele estigma o resto de sua vida, Saul teria
que carregar a culpa de ter falhado e decepcionado a seu pai.
O sepulcro de Raquel era o triste lembrete da dor e da
perda provocadas pelo nascimento de Benjamim. Talvez por isso, Jacó tenha
escolhido ser enterrado ao lado de Lia, sua primeira esposa e não de Raquel, a
que ele realmente amou e cujo dote lhe custou catorze anos de trabalho.
O “sepulcro de Raquel” representa em nossa vida aqueles
momentos cruciais em que temos que escolher o que deve sobreviver e o que deve
ser sacrificado. Toda escolha implica renúncia. Raquel preferiu morrer para que
Benjamim fosse poupado, mesmo sabendo que ele teria que carregar esta culpa o
resto de sua vida.
Quantos já não temos machucado ao fazer nossas escolhas? Quanta
frustração geramos nas pessoas a quem amamos? Quantos “jumentos” perdidos foram
achados por outros? Quantas vezes deixamos de ser motivos de orgulho e alegria
para nos tornarmos motivo de queixa e decepção? Falhamos como pais, como filhos, como irmãos, como cônjuges, como amigos.
O que fazer ante a esta realidade? O mesmo que Saul
fez: seguir jornada. Ou como disse
Paulo: “Deixando as coisas que para trás ficam, avanço para as que estão diante
de mim...” (Filipenses 3:13).
Se os jumentos já foram encontrados, a busca de Saul se
encerrou. A missão que recebera de seu pai era apenas o pretexto usado por Deus para que Saul encontrasse seu próprio destino. Portanto, o extravio dos jumentos foi um prejuízo necessário e temporário que resultaria num ganho infinitamente maior. Por isso, ao anunciar a Saul que eles haviam sido encontrados, Samuel lhe disse: "O que é isso diante de tudo o que é desejável em Israel e que Deus reservou para você e sua família?"
O que não dá é ficar lamentando a vida
inteira sem se aperceber do propósito maior por trás dos fatos. Algumas feridas, o
tempo e a graça se encarregarão de cicatrizar. Saul estava certo de que a aflição que
causara ao coração de seu pai eventualmente cessaria. O que bem que estava por
vir compensaria toda angústia que provocara, ainda que involuntariamente.
Saul prosseguiu sua jornada, indiferente ao que aqueles homens
diziam. Aliás, eles não lhe disseram nada que já não soubesse.
O segundo grupo que cruzou seu caminho era formado por três
homens que iam ao encontro do Senhor em Betel e levavam consigo suas ofertas.
Ao encontra-lo, a primeira coisa que fazem é perguntar-lhe como ele estava.
Além de demonstrar preocupação com seu estado atual, um deles lhe oferece pão.
O profeta lhe deixou de sobreaviso de que ele não rejeitasse aquele suprimento.
Para cada dedo em riste, há mãos que se estendem para nos ajudar. Para cada
pessoa que nos encontra no sepulcro de Raquel, há quem nos encontre a caminho
de Betel. São estes que nos trazem provisão, seja de ordem material, emocional
ou espiritual.
Se o primeiro grupo representava o passado, o segundo
representava o presente.
O principal compromisso de Deus é com a execução de Seus
propósitos. Mas isso não se sucederá sem que se garanta a manutenção da vida. Por
isso, antes de pedir que venha o Seu
reino e seja feita a Sua vontade, Jesus nos ensinou a pedir que o pão nosso de
cada dia nos seja dado HOJE. Buscamos em primeiro lugar o Seu reino e a Sua
justiça, mas na certeza de que as demais coisas nos serão acrescentadas. E para
tal, Ele usa canais sempre dispostos a serem bênção na vida dos outros. Quem
sobe a Betel para buscar ao Senhor, tem que está disposto a encontra-lo no
próximo. O Deus revelado no Evangelho escolheu ser amado no próximo. Aqueles
homens poderiam ter agido como o sacerdote e o levita da parábola, que por
estarem a caminho do templo, não se dignaram a atender o moribundo encontrado
no caminho. Cada um estava preocupado em garantir que chegariam a tempo para
cumprir sua escala no culto. Não podemos usar Deus como desculpa para a nossa
indiferença. Se as mãos que se estendem a Deus em louvor não forem as mesmas
que se estendam ao próximo em amor, qualquer gesto de adoração será nulo.
Não perca tempo dando ouvidos a quem lhe acusa. Prefira
escutar atentamente aos que ao lhe encontrarem no caminho demonstrem
preocupar-se com você através de uma simples pergunta: como você está?
Se há quem se preocupe com os bens perdidos, há quem se preocupe com você, e que se dispõe a lhe ouvir em vez de lhe acusar.
O terceiro e último grupo com que Saul se encontrou naquele
dia representava o futuro. Cada um dos seus componentes trazia instrumentos
usados para louvar a Deus, e enquanto caminhavam, profetizavam. Saul foi
orientado por Samuel a misturar-se com eles. Não deu outra coisa: ele também
começou a profetizar. Seu coração foi transformado. Ele já não era o mesmo
homem que saíram em busca dos jumentos perdidos de seu pai, mas o homem
escolhido por Deus para ocupar o trono de Israel. Somente alguém que tenha
passado por esta metamorfose poderia receber de Deus carta branca para fazer o
que bem desejasse.
"Faze o que achar melhor, porque Deus é contigo!" (1 Samuel 10:7b). Somente corações transformados recebem este voto de confiança da parte de Deus.
Paulo, xará de Saul,[2]
nos orienta a que sejamos cheios do Espírito Santo falando entre nós com salmos,
hinos e cânticos espirituais.[3]
Ninguém será transformado naquilo que está destinado a ser enquanto se mantiver
isolado. A transformação feita por Deus, mesmo sendo de caráter subjetivo e
individual, ocorre no contexto coletivo.
Precisamos caminhar ao lado de quem vislumbra o futuro, desafiando-nos a
ser melhores a fim de estarmos preparados para aquilo que ele nos reserva. Os
representantes do passado, passam por nós. Os representantes do “aqui e agora”
cruzam nosso caminho, trazendo-nos provisão e encorajamento. Mas é na companhia
dos representantes do futuro que devemos prosseguir em nossa jornada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário