Por Hermes C. Fernandes
"Aonde tenha sol, é pra lá que eu
vou..." diz o refrão de uma das mais conhecidas canções da banda mineira Jota
Quest. Seu estrondoso sucesso se deve ao fato de que todos queremos estar onde
coisas boas acontecem. Sonhamos com cenários paradisíacos, onde impere a
harmonia, reminiscências do jardim de onde nossos ancestrais foram excluídos.
Todavia, vemo-nos inseridos numa realidade cruel, marcada pela injustiça e o
desamor. Sentimo-nos deslocados e desolados. Definitivamente, não é este o
lugar onde gostaríamos de estar. Assim como Davi, preferimos ser conduzidos aos
pastos verdejantes e às águas tranquilas, mas nos esquecemos de que entre um e
outros, às vezes fazemos escalas demoradas em vales nos quais se projeta a
sombra da morte.
O profeta Ezequiel nos narra uma
experiência mística em foi arrebatado pelo Espírito de Deus e colocado no meio
de um vale cheio de ossos secos.[1]
Não levando em conta o cenário de horror e o odor insuportável, Deus o fez
andar ao redor dele.[2]
Qualquer vista seria melhor que aquela.
Qualquer lugar do mundo seria melhor
para se estar do que aquele. Diferentemente de um cemitério onde restos mortais
se escondem sob a terra, Ezequiel teve que caminhar entre ossos expostos na
superfície do vale. Não deve ter sido tarefa fácil passear entre eles. Porém,
era necessário para que pudesse constatar seu estado. Uma coisa é ouvir falar,
outra bem diferente é averiguar uma situação com seus próprios olhos.
A primeira constatação feita por
Ezequiel foi de caráter quantitativo. Os ossos eram numerosos. Não era algo
pontual, mas generalizado. A segunda constatação foi de caráter qualitativo: os
ossos estavam sequíssimos. O que indica que já estivessem ali há muito tempo.
Não se tratava de algo recente, ocorrido subitamente. Mas de um fenômeno que
demandou tempo para ser processado. Um
número tão grande de ossos não chegaria àquele estado de uma hora para outra.
Outro dado importante é que esses
ossos estavam espalhados “sobre a face do
vale”, isto é, expostos, e não enterrados como era de se esperar. O que
sugere que não receberam as devidas honras, mas abandonados a relento. Possivelmente,
aquele vale havia sido cenário de uma batalha épica que resultou na morte de
milhares de soldados.
Sem entender direito a razão de
haver sido transportado àquele lugar, o profeta ouve de Deus a inquietante
pergunta: “Filho do homem, poderão viver
estes ossos?” Nenhuma outra resposta parecia plausível senão a que deu: “Senhor Deus, tu o sabes.”[3]
Ele não se atreveria a responder de maneira diferente. Às vezes, a melhor
resposta é a admissão de nossa ignorância. Ninguém é obrigado a saber tudo. O
único que conhece todas as respostas e possibilidades é Deus.
Longe de considerar aquela
resposta evasiva, Deus lhe dá uma ordem para que profetizasse sobre aqueles
ossos: “Ouvi a Palavra do Senhor!”
O que é capaz de mudar a
realidade à nossa volta não é a nossa vontade, mas a Palavra do Senhor. Somente
um Deus que não muda pode perfeitamente mudar todas as coisas. Não há quadro que
se mostre irreversível ante a Sua soberana vontade. Todavia, Sua vontade é
revelada em Sua Palavra, e esta, por sua vez, deve ser expressa por lábios que
se disponibilizem a tal. Seus lábios são a fonte, os nossos são os canais. O
que sai de Sua boca deve encontrar eco em nossa boca e em nosso coração.
“Assim diz o Senhor Deus a estes ossos.”[4] Deus não lança palavras ao vento. Sua Palavra é direcionada a uma situação em particular e não generalizada. “Farei entrar em vós o espírito, e vivereis”. Logo de início, Ele revela o fim, o objetivo final daquela Palavra: gerar vida. Ele poderia ter feito isso num piscar de olhos, isto é, instantaneamente. Todavia, Deus prefere o processo. Para se alcançar o objetivo anunciado, faz-se necessário passar por várias etapas. Assim como a deterioração é um processo, a restauração também o é. Por isso, logo após anunciar o fim, Ele anuncia também cada etapa do processo desencadeado pela Sua Palavra:
“Porei nervos sobre vós...” [5]A
restauração começa pela percepção. É através dos filamentos nervosos que nossos
sentidos captam os dados fornecidos pela realidade e abastece nossa mente. Sem
esta etapa do processo, tornamo-nos apáticos, alienados, completamente alheios
ao que acontece à nossa volta.
“Farei crescer carne sobre vós...” A restauração passa pela
disposição. Sem a força necessária, não podemos responder à altura as demandas
da realidade que nos são transmitidas pela nossa percepção.
“E sobre vós estenderei pele.” Trata-se daquilo que se exterioriza, que é visto por todos, que sai da subjetividade em direção à objetividade: nossas ações!
Apesar de o fim ter sido
anunciado desde o início, há um alvo para além do alvo, um objetivo que
transcende o objetivo anunciado: “Então
sabereis que eu sou o Senhor.” Trazer vida é o fim; produzir consciência é
o fim para além do fim. Eu diria que este é o fim supremo.
“Portanto”, declara
Ezequiel, “profetizei como me foi
ordenado. Enquanto eu profetizava houve um ruído, um barulho, e os ossos se
ajuntaram, cada osso ao seu osso.” Assim como há um fim para além do fim,
há um início antes mesmo do início. Há algo que precisa ocorrer para que o
processo seja deflagrado. Cada osso deve encontrar o seu lugar junto a outro
osso. Não surgirá pele sobre esqueletos sem carne. Não haverá carne sem que os filamentos
nervosos estejam estendidos por toda a extensão do corpo. E não haverá nada
disso sobre ossos desconjuntados. Mas há
um efeito colateral que trará certo desconforto aos que assistirem à cena: para
que os ossos sejam reunidos, o barulho será inevitável. E cá entre nós, costuma ser ensurdecedor. Se
os ossos não estivessem expostos “na face do vale”, mas enterrados, certamente
não haveria barulho. Porém, a dificuldade para que encontrassem seus
respectivos encaixes seria ainda maior. Apesar do desconforto da exposição, às
vezes ela acaba por facilitar o processo.
“Olhei, e vieram nervos sobre eles, e cresceu a carne, e estendeu-se a
pele sobre eles, mas não havia neles espírito.” [6]
Não basta que haja percepção, disposição e atitude se não houver propósito. O
propósito produzirá a motivação necessária. O “espírito” é o que unifica todas
as coisas e as coloca em perspectiva. O espírito é o agente revelador do
propósito. Sem que haja espírito, não há consciência, sem que haja consciência,
não há desígnio, não há propósito. Tudo ocorre à revelia, desprovido de
qualquer sentido.
“Então ele me disse: Profetiza ao
espírito; profetiza, ó filho do homem, e dize ao espírito: Assim diz o Senhor
Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que
vivam.”[7]
O espírito vem de todas as direções para nos apontar uma direção específica. Ele não vem de uma para nos apontar várias.
Deus parte do Todo para as partes e não das partes para o Todo. Há um propósito
maior que abarca todos os demais. O que Ele almeja fazer em nossa vida está
diretamente ligado ao que Ele está fazendo na vida dos demais. Tudo se conecta
perfeitamente, dentro de uma misteriosa sincronicidade.
Ao profetizar como Deus ordenara,
e não como ele quisera, algo inacreditável ocorreu diante dos seus atentos
olhos: “O espírito entrou neles e viveram, e se puseram em pé, um exército
grande em extremo.”[8]
Deus está trabalhando na constituição de Seu poderoso exército espalhado por
toda a terra, infiltrado em todas as esferas sociais, pronto a atender às Suas
ordens e a executar os Seus desígnios. O caos atual que nos desafia os sentidos
está grávido da ordem e da harmonia próprias do Reino de Deus. Em breve, o insuportável
odor da morte que empesta o mundo se dissolverá ante a fragrância do bom
perfume do amor de Cristo. A vida prevalecerá sobre a morte. O bem sobre o mal.
O amor sobre o ódio. A justiça sobre a iniquidade. Quem viver verá. Quem morrer
reviverá para ver a glória de Deus.
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