Por Hermes C. Fernandes
A Bíblia é um livro de milagres.
De Gênesis a Apocalipse, a gente se depara com fenômenos inexplicáveis como cegos
enxergando, paralíticos andando, mortos ressuscitando, etc. Mas alguns se
destacam por não terem acontecido mais que uma vez. Dois exemplos disso são a
abertura do Mar Vermelho e as pragas do Egito. De todos os milagres narrados
nas Escrituras, há um em especial que devido à sua proporção provoca reações
inusitadas.
“Então Josué falou
ao Senhor, no dia em que o Senhor entregou os amorreus nas mãos dos filhos de
Israel, e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-se em Gibeom, e tu, lua,
no vale de Aijalom. E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou
de seus inimigos. Não está escrito no livro dos Justos? O sol se deteve no meio
do céu e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro. Não houve dia
semelhante a esse, nem antes nem depois dele, em que atendeu o Senhor assim à
voz de um homem. Certamente o Senhor pelejava por Israel.” Josué 10:12-14
De longe, trata-se do maior
milagre registrado nas Escrituras. Um milagre de proporção épica e astronômica.
Não importa se foi o sol propriamente ou se foi a rotação da Terra que parou,
ou se o tempo simplesmente congelou. O fato é que o próprio escritor afirma que
jamais Deus havia atendido à voz de um homem, realizando proeza de tal
magnitude.
O que justificaria algo assim?
Não era apenas mais uma batalha como tantas outras? Por que Deus daria tamanha
importância àquela batalha?
Contra quem Josué
lutava? Seria esta a questão chave? Absolutamente, não! A questão chave é: Por
quem Josué lutava?
É dito que “certamente o Senhor pelejava por Israel”. Porém, poucos percebem
que neste episódio em particular, Israel não lutava por si mesmo, mas em favor
de outro povo, a saber, os Gibeonitas, também conhecidos como Heveus.
Se almejarmos que Deus intervenha
em nossas batalhas cotidianas, devemos refletir sobre esta questão: por quem temos lutado? Ele assume nossas
causas quando assumimos a causa do nosso semelhante.
Mas por que razão Israel comprou
a briga dos Gibionitas?
Convém notar que eram cinco
contra um! Cinco reis se reuniram para guerrear contra Gibeom. Mas, por quê? O
que eles teriam feito capaz de despertar tamanha oposição? Eles fizeram aliança
de paz com Israel!
Porém, esta aliança fora feita em
condições suspeitas.
Rumores se espalhavam por toda
região de Canaã. Duas grandes cidades já haviam sucumbido ante as investidas
militares de um povo nômade, que deixara a escravidão do Egito cerca de
quarenta anos antes, e que agora, sob o comando de Josué, marchava feito um
rolo compressor, derrubando tudo à sua frente.
Jericó e Ai foram devastadas.
Quem seria a próxima peça do dominó a cair?
Ao ouvirem tais coisas, “todos os reis que viram a oeste do Jordão,
nas montanhas, nas campinas e em toda a costa do grande mar, em frente do
Líbano (...) ajuntaram-se de comum acordo para pelejar contra Josué e contra
Israel. Todavia, quando os moradores de Gibeom ouviram o que Josué fizera com
Jericó e Ai, usaram de astúcia, e foram, e se fingiram embaixadores, e levaram
sacos velhos sobre os seus jumentos, e odres de vinho velhos, rotos e
consertados. Nos pés traziam sandálias velhas e remendadas, e roupas velhas
sobre si. Todo o pão que levavam para o caminho era seco e bolorento. Vieram a
Josué, ao arraial em Gilgal, e disseram a ele e aos homens de Israel: Chegamos
de uma terra distante; fazei aliança conosco.”[1]
Para assumir a hegemonia daquela
vasta região, Israel não poderia poupar nenhum daqueles povos. Para os
israelitas, sua espada seria juízo de Deus sobre nações perversas, que se
promiscuíra com os falsos deuses, contaminando suas gerações.[2]
Ao alegar terem vindo de uma
terra longínqua, os moradores de Gibeom tinham a clara intenção de serem
poupados da fúria israelita. Segundo eles, o que os trouxera de tão longe era a
fama do seu Deus, e tudo quanto fizera aos egípcios (v.9).
Eles não apenas mentiram
descaradamente, como forjaram evidências falsas que corroborassem com sua
versão. Ao serem questionados se de fato vinham de uma terra distante, eles
responderam:
“Este nosso pão
tomamos quente das nossas casas no dia em que saímos para vir ter convosco. Mas
agora já está seco e bolorento. E estes odres, que enchemos de vinho, eram
novos, mas já estão rotos. E nossas vestes e nossas sandálias já envelheceram,
por causa da longa jornada.”
Josué 9:12-13
Que contraste! Um povo acostumado
a comer do maná que descia do céu, agora se vê diante de representantes de um
povo, supostamente vindos de longe, com pães mofados; um povo cujas roupas e sandálias
não se envelheceram durante sua jornada de quarenta anos no deserto, diante de
pessoas com roupas e sandálias velhas.[3] Que ameaça poderiam inspirar?
Eles nem sequer tinham um rei!
Embora o pão que traziam fosse
velho e o bolorento, não era suficiente como evidência de que haviam vindo de
lugares longínquos. Todo aquele
artifício cênico visava validar suas palavras e, assim, convencer Josué a
dar-lhes um destino diferente que tivera os moradores da Jericó e Ai. Pois,
funcionou: “Assim Josué fez uma aliança
de paz com eles, prometendo poupar-lhes a vida, e os líderes da comunidade
prestaram-lhes juramento” (v.15).
Bastaram três dias para que a
verdade viesse à tona. Mas agora, já era tarde. A aliança já havia sido feita
sob juramento, e, portanto, não poderia ser violada. Sentindo-se enganado,
Josué não pôde voltar atrás, porém, pronunciou uma sentença sobre os moradores
de Gibeom:
“Chamou-os Josué e
lhes perguntou: Por que nos enganastes, dizendo: Muito longe de vós habitamos,
morando vós no meio de nós? Agora sereis malditos: entre vós nunca deixará de
haver servos, rachadores de lenha e tiradores de água, para a casa do meu Deus
(...) Nesse dia, Josué os fez rachadores de lenha e tiradores de água para a
comunidade e para o altar do Senhor, até o dia de hoje, no lugar que Deus
escolhesse.”
vv.22-23, 27
Em outras palavras, Josué
fez-lhes uma concessão, permitindo que vivessem entre eles, desde que
aceitassem com resignação o papel de servos. Porém, o que para Josué soava como
uma maldição, na verdade era uma bênção. Por muitos séculos, os gibeonitas
viveram entre os israelitas, trabalhando na manutenção do templo.
Ora, se aquela aliança fora feito
tendo uma mentira por base, por que Deus a honraria, a ponto de realizar tão
grande milagre?
As vestes e sandálias velhas não serviam
de evidências conclusivas de que teriam vindo de longe, pelo menos, não em
termos geográficos. Mas talvez fossem indícios de que sua origem remontava
tempos a muito esquecidos.
De onde, em termos históricos,
teria vindo aquela gente? Qual seria a sua origem? Por que Deus a teria poupado?
A resposta pode ser encontrada em
Gênesis 34:1-31.
Jacó havia tido doze filhos, dos
quais viriam as doze tribos de Israel. Porém, entre tantos filhos varões, Jacó
também teve uma filha chamada Diná.
Num belo dia, Diná resolveu dar
uma volta para entrosar-se com outras moças da região. Um príncipe por nome Siquém,
filho de Hamor, o Heveu, viu-a e apaixonou-se por ela. Os dois acabaram se
relacionando sexualmente. Àquela época, uma relação sexual sem o consentimento
da família era considerada uma humilhação. Querendo corrigir seu erro, Siquém
recorreu ao seu pai, pedindo que fosse a Jacó, o pai da moça, e lhe pedisse sua
mão em casamento. Ao saber que sua filha fora violada, Jacó ficou muito triste,
e não quis tomar qualquer decisão sem consultar seus filhos. Quando souberam do ocorrido, os filhos de
Jacó iraram-se e desejaram vingança.
Porém, Hamor, pai de Siquém, lhes fez uma proposta: que eles fizessem
uma aliança, de modo que ambos os povos se tornassem um só. Assim, eles
poderiam enamorar-se de suas mulheres, e vice-versa, cultivar suas terras, partilhar
seus recursos, etc. Porém, o interesse de Siquém era receber a mão de Diná em
casamento. Os filhos de Jacó pareciam amistosos e demonstraram boa vontade
diante da proposta, contanto que os homens daquela cidade se submetessem ao
rito da circuncisão. Aquele era o sinal que Deus havia dado a Abraão. Qualquer
que almejasse unir ao seu povo deveria recebê-lo. Os homens da cidade
prontamente aceitaram e foram circuncidados.
Tudo parecia correr bem. Aceitar a circuncisão era o mesmo que entrar em
aliança. Três dias depois de terem sido circuncidados, quando ainda estavam se
convalescendo do procedimento, os filhos de Jacó vieram repentinamente e
mataram covardemente todos aqueles homens, inclusive a Siquém e a seu pai. Quando
Jacó soube do ocorrido, ficou profundamente abalado.
A partir desse fatídico episódio,
não se ouve falar mais de Diná, nem tampouco de seus descendentes. Não sabemos
que fim teve ela; como viveu ou como morreu. Tudo indica que a história do povo
com que ela se aparentou, correu às margens, paralela à história das tribos de
Israel.
Séculos se passaram. Tudo aquilo parecia
uma página virada. Porém, Deus jamais Se esqueceu daquela gente.
Mesmo longe, os Gibeonitas
estavam a par do que Deus fazia pelos filhos de Israel. Sabiam do tempo de
escravidão que amargaram no Egito, do livramento que o Senhor lhes dera, da
maneira como Ele os sustentara no deserto. Mas eles souberam esperar por vários
séculos, até chegar a hora certa de se reaproximarem.
Não vieram imbuídos de um desejo
de vingança. Queriam apenas a chance de coexistirem. A proposta que faziam a
Josué era a mesma que seu ancestral Hamor fizera a Jacó.
Embora os Heveus constassem da
lista de nações que deveriam ser destruídas por Israel, Deus lhes fez uma
exceção.
Agora, os descendentes daqueles
que os haviam destruído no passado, lutavam por sua própria vida. Foi a este
gesto que Deus honrou ao fazer parar o sol e a lua à pedido de Josué.
Deus jamais se esquecera de Diná,
nem do povo com o qual se aparentou.
Há que se considerar que a mulher
misteriosa descrita por João em Apocalipse,[4] vestida de sol e tendo a lua sob
os seus pés e uma coroa de doze estrelas (referência às dozes tribos de
Israel), seja uma representação da filha esquecida de Jacó. Se assim for, ela
também tipifica todos relegados ao esquecimento, os proscritos, os
marginalizados, aqueles que são prioridades na agenda de Deus.
Os Gibeonitas se tornaram tão
importantes para Israel a ponto de ajudarem na reconstrução de Jerusalém e do
templo após o retorno do exílio babilônico.
Lemos
em 1 Crônicas 9:2 que ao voltarem do exílio, “os primeiros a se restabelecerem nas suas propriedades e nas suas
cidades foram alguns israelitas, os sacerdotes, os levitas e os servidores do
templo (gibeonitas)”.
Foi
também em suas terras (Gibeom) que o tabernáculo foi mantido por muito tempo.
Foi também lá que Deus apareceu a Salomão, dando-lhe a oportunidade de pedir o que
quisesse. No mesmo lugar onde Josué pediu que o sol se detivesse, Salomão fez o
inusitado pedido por sabedoria.
Séculos
depois do episódio em que Josué lutou por eles, Deus trouxe juízo sobre Israel
por causa do tratamento que Saul dera aos Gibeonitas. Depois de três anos de
fome, Davi consultou ao Senhor, que lhe disse que aquilo era resultado dos maus
tratos que o rei que o antecedera dera àquele povo com qual Israel tinha uma
aliança de coexistência.[5] A
fome só cessou quando Davi atendeu ao apelo dos Gibeonitas, entregando-lhes os
descendentes de Saul, para que lhes fizesse justiça. Deliberadamente, Davi
poupou a um deles, a saber, a Mefibosete, filho de Jonatas, com quem Davi
fizera uma aliança.[6]
Nosso
Deus jamais se esquece de uma aliança. Assim como os Gibeonitas foram poupados
por causa da aliança feita com Josué, e Mefibosete foi poupado por causa da
aliança entre Davi e seu pai, somos poupados da justa ira divina por causa da
aliança feita entre Deus e Seu Filho Unigênito, Jesus Cristo.
Na
noite em que Cristo celebrou a Ceia em que anunciaria a Nova Aliança no Seu
sangue, os discípulos foram guiados àquele lugar por um rapaz que carregava um cântaro
de água.[7]
Ora, quem fora “amaldiçoado” a carregar água em Israel? E ainda: quem teria
feito a cruz, já que os Gibionitas eram os responsáveis por cortar lenha em
Israel? E por que razão Jesus nasceu numa família cujo chefe era um carpinteiro?
Ainda que José não fosse propriamente um Gibionita, identificava-se com eles
por sua profissão. O próprio Cristo se identifica com eles ao oferecer à mulher
samaritana, e posteriormente ao seu povo em Jerusalém, água viva.[8]
Se
quisermos que Deus peleje por nós, teremos que escolher melhor por quem
pelejemos. Ao invés de cerrarmos fileiras com os poderosos, nós nos portaremos ao
lado dos que correm às margens da história, dos lenhadores e carregadores de
água, das minorias, dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais, dos
usurpados, dos explorados, dos oprimidos. É por eles que Deus trava suas mais
gloriosas batalhas. É por eles que Ele é capaz de subverter a ordem cósmica. É
com eles que Deus está aliançado, a ponto de dizer que qualquer coisa que façamos
aos tais, será como se fizéssemos ao próprio Cristo. Deus não apenas freia o
sol, como também o transforma em vestes para os maltrapilhos deste mundo. Ele não
apenas freia a lua, mas também a coloca sob os pés dos que se apresentam
descalços ante a sacralidade da vida.
[1] Josué 9:1-6
[2] Deuteronômio 20:10-18
[3]
Deuteronômio 29:5
[4]
Apocalipse 12:1 – A mulher vestida de sol tem sido identificada pela teologia
católica como Maria, e por muitos protestantes, tem sido identificada, ora como
figura da igreja, ora como Israel. É possível uma múltipla interpretação.
Todavia, acredito tratar-se de Diná, a filha esquecida de Jacó, e ao mesmo
tempo, da igreja, o povo formado por aqueles que, segundo Paulo, são considerados
desprezíveis pelo mundo (1 Coríntios 1:26-28). Assim como Diná deu origem
àquele povo, a igreja concebe a nova humanidade.
[5]
2 Samuel 21:1-14
[6]
2 Samuel 9:1-7
[7]
Lucas 22:10
[8]
João 4:10; 7:38
Sensacional..... Abençoador de mais essa reflexão, Deus abençoe Bispo.
ResponderExcluirBom
ResponderExcluirMuito bom.
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