segunda-feira, janeiro 23, 2017

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Janelas da alma



Por Hermes C. Fernandes

Da janela do quarto de uma pousada cravada na Serra da Mantiqueira aprecio a vasta selva, fruto da inspiração divina. Se bela hoje, imagina antes de ser deflorada pela intromissão humana.
Como é possível que haja tantas tonalidades de verde! Sem contar as demais cores das quais o espectro do arco-íris é uma pálida amostra grátis. Bromélias, ipês-amarelos, jacarandás, jequitibás, pinheiros e orquídeas disputam espaço sob a abóbada celeste.
É ingênuo acreditar que a beleza resida na simetria.
Quão pródiga é a vida! Vida que resiste a temperaturas que podem ser amenas ou severas durante os rigorosos invernos. Cada centímetro quadrado é povoado pelas mais variadas espécies que coexistem acolhidas e aquecidas sob o manto protetor da mãe natureza.
E é sob a sua batuta que se se executa a mais esplêndida sinfonia, composta, não por violinos, violoncelos e trompetes, mas por pássaros, sapos e cigarras.
Por mais densa que seja, a selva é o cenário onde a liberdade corre solta. Pássaros voam descontraídos por alamedas imaginárias entre opulentas árvores. Sem se chocarem, driblam habilmente cada obstáculo, para, em seguida, aninharem-se e assistirem estupefatos ao espetáculo do entardecer.
As pedras proveem a moldura por onde águas cristalinas jorram, num convidativo fluxo ininterrupto pleno de vida.
E o que dizer das fragrâncias? Como distingui-las quando o vento as espalha arteiramente confundindo nosso olfato? Talvez esta seja uma tarefa para as borboletas.
Quem diria que tal ordem emergiria despudoradamente do caos!
Doutra feita, da janela de um hotel numa grande metrópole norte-americana, eu admirava a 'selva de pedra', fruto da genialidade humana.
Quanta aridez feita de cimento e aço!
Recapitulando Babel, cada edifício é um monumento à nossa arrogância. O vidro que os reveste serve para espelhar nosso narcisismo crônico.
Que outra sensação nos seria provocada senão a de claustrofobia a céu aberto?
Quão monótona é a simetria dos ângulos retos!
Lá embaixo carros barulhentos disputam espaço nas avenidas calculadamente traçadas e tumultuadas. Uma orquestra feita de roncos de motores e buzinas alucinadas, regidas sob a batuta da estupidez.
Esgotos fluem impunemente sob sucessivas camadas de asfalto. Seu insuportável odor é disfarçado pelos gases tóxicos emitidos por nossas fábricas e veículos, igualmente responsáveis por desbotar o azul do céu, conferindo-lhe um tom morbidamente acinzentado.
Quão caótica é a ordem que impusemos ao mundo!
Entre os cômodos e corredores, avenidas e vielas, não há vida, apenas mera existência.
Da minha janela, não posso ver o pôr do sol. Apenas inúmeras outras janelas de onde outros como eu observam a mesma cena, caso não estejam entretidos em seus afazeres. A vida é consumida pelos sonhos de consumo.
Os frutos que colhíamos livremente no paraíso foram substituídos pelas bugigangas que compramos com o suor do nosso rosto ou, pior, com o suor do rosto alheio.
Por estas e outras que me sinto compelido a confessar: Inspira-me mais a arquitetura das flores que dos arranha-céus.

Numa das janelas, a vida apetece. Noutra, acontece.

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