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sexta-feira, dezembro 09, 2016

Amigo é para se guardar ou partilhar?



"Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo." 
- Antoine de Saint-Exupéry


Por Hermes C. Fernandes

Não basta estar no lugar certo, com a intenção correta, se não nos fizermos acompanhar das pessoas certas. Paulo, o grande apóstolo dos gentios, jamais se deu o luxo de trabalhar sozinho. Sempre o encontramos acompanhado, ora por Barnabé, ora por Silas, ou por Timóteo ou Tito. Talvez por conhecer a instrução dada por Jesus a Seus primeiros discípulos, para que fossem de dois em dois. Isso não apenas dava peso ao seu testemunho acerca de Cristo, como também lhe servia de motivação adicional em suas longas e perigosas jornadas. Em 2 Coríntios 2:12-13, encontramos seu desabafo num momento em que se viu sozinho:

“Ora, quando cheguei à Trôade para pregar o evangelho de Cristo, e uma porta se me abriu no Senhor, não tive descanso no meu espírito, porque não achei ali meu irmão Tito. De sorte que, despedindo-me deles, parti para a Macedônia.”
Sem Tito para ajudá-lo, o apóstolo preferiu despedir-se dos irmãos de Trôade, e partir para a Macedônia. A pressa de Paulo em deixar Trôade foi tão grande, que acabou esquecendo lá sua capa e seus livros. Por isso, em sua epístola a Timóteo, pede que se lhe tragam tais coisas lá deixadas (2 Tm.4:13). Chegando à Macedônia, Paulo reencontrou seu discípulo amado. Leia seu relatório, e perceba a alegria com que relata seu reencontro com Tito:
“Pois mesmo quando chegamos à Macedônia, a nossa carne não teve repouso algum, mas tudo fomos atribulados: por fora combates; por dentro, temores. Mas Deus, que consola os abatidos, consolou-nos com a vinda de Tito.” 2 Coríntios 7:5-6
É interessante notar algo. Quando chegou à Trôade, devido à ausência de Tito, seu ESPÍRITO não teve descanso. Mas na Macedônia, com a vinda de Tito, mesmo com toda a tribulação, foi a sua CARNE que não teve repouso. Em outras palavras, seu espírito estava reanimado com a presença do amigo, ainda que “por fora” houvesse combates, e “por dentro temores”.

Pior do que a presença das lutas é a ausência de amigos. É melhor o cansaço da carne do que a exaustão do espírito. A amizade é uma espécie de elixir para a alma.

Será que se Paulo estivesse sozinho naquela prisão em Filipos, com as costas ensanguentadas, ele teria encontrado ânimo para cantar? Sua carne estava em frangalhos, mas seu espírito renovado, por ter ao seu lado Silas, outro dos seus fiéis companheiros. Quando Tito ficou sabendo do desapontamento de Paulo por não encontrá-lo em Trôade, tratou de sair apressadamente ao seu encontro na Macedônia.

Entre Paulo e Tito havia uma afinidade de sentimento e de propósito. Confira as palavras do próprio Paulo acerca do seu pupilo:
“Por isso fomos consolados pela vossa consolação, e muito mais nos alegramos pela alegria de Tito, porque o seu espírito foi recreado por todos vós.” 2 Coríntios 7:13
Repare bem nisso: Há uma recreação espiritual que só é possível pela presença de alguém com quem tenhamos afinidade de sentimento. Tem que ser algo recíproco. Qualquer bem que se fizesse a Tito, era como se fizesse ao próprio apóstolo. Recreá-lo era o mesmo que alegrar o coração do seu mentor.

Veja quanto apreço, confiança e expectativa foram investidos no jovem pastor. Possivelmente, Paulo o visse como quem daria continuidade ao seu ministério. Foi ele o enviado especial para recolher as ofertas enviadas pelos coríntios, o que comprova grande confiança.
“De maneira que exortamos a Tito que, como começou, assim também acabe esta graça entre vós.” 2 Coríntios 8:6
Quanta confiança! Paulo sabia que Tito não se aproveitaria disso para explorar seus irmãos: “Dou graças a Deus, que pôs a mesma solicitude por vós no coração de Tito” (v.16). Definitivamente, seus corações batiam no mesmo compasso. O zelo pela obra de Deus lhes era comum. Ambos amavam as pessoas com a mesma intensidade, e a mesma disposição de servi-las.

Já no finalzinho de sua epístola, Paulo revela:
“Aproveitei-me de vós por intermédio de algum daqueles que vos enviei? Roguei a Tito, e enviei com ele um irmão. Aproveitou-se Tito de vós? Acaso não ANDAMOS NO MESMO ESPÍRITO? Não seguimos as mesmas pisadas?” 2 Coríntios 12:17-18
Afinidade de sentimento produz companheirismo, mas a afinidade de propósito produz cooperação. Ouça a veemência do seu testemunho: “Quanto a Tito, é meu companheiro e cooperador para convosco” (v.23a).

Ser companheiro é caminhar junto, seguir as mesmas pisadas. Ser cooperador é trabalhar conjunto. Companhia e cooperação só são possíveis quando andamos no mesmo espírito. Como podemos cooperar com alguém, sem que estejamos acompanhando-o? E como podemos acompanhar alguém de quem discordamos? Quando há discordância de propósito, a comunhão se torna impossível. Não me refiro aqui a pequenas discrepâncias de opinião. Nem sempre vamos concordar 100% em tudo. Mas no que tange ao propósito pelo qual estamos caminhando juntos, tem que haver concordância absoluta. “Andarão dois juntos, se não estiverem de acordo?”, é a questão levantada pelo Senhor pelos lábios do profeta (Amós 3:3).

Também deve haver uma relação de absoluta confiança e cumplicidade. Era Tito o responsável por confirmar o trabalho apostólico de Paulo, estabelecendo presbíteros de cidade em cidade:

“Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em boa ordem o que ainda resta, e de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei.” Tito 1:5
Paulo jamais correria o risco de confiar uma tarefa tão importante a qualquer pessoa. O convívio entre eles era a garantia de que se podia confiar no outro sem ressalvas. Paulo sabia que Tito estava habilitado para terminar o que ele começara.

Cabia a Tito organizar, pôr em ordem, construir sobre as bases deixadas por Paulo. Imagine se Tito resolvesse lançar outro fundamento além do que Paulo já havia lançado. Seria um desastre. Mas esse risco sequer foi considerado. 

A confiança de Paulo em seu discípulo e amigo Tito era tamanha que incluía até mesmo o cuidado pela subsistência de outros.

Confira:
“Quando te enviar Ártemas, ou Tíquico, procura vir ter comigo a Nicópolis, porque resolvi passar o inverno ali. Faze tudo o que puderes para ajudar a Zenas, doutor da lei, e a Apolo, para que nada lhes falte.” Tito 3:12-13
Alguém já ventilou que houvesse uma animosidade ou rivalidade entre Paulo e Apolo. Ledo engano. Se assim fosse, Paulo não teria se preocupado com sua subsistência. E ainda que houvesse, isso demonstraria o grau de maturidade do apóstolo, a ponto de preocupar-se com a subsistência de um desafeto.

Percebemos também que não havia qualquer tipo de ciúmes de Paulo para com Tito. Em momento algum ele receou enviá-lo a Apolo. Este tem sido um problema sério em muitos ministérios hoje. Os pastores têm ciúme exacerbado de ‘suas’ ovelhas, de ‘seus’ obreiros. Insistem em mantê-los presos no redil, temendo que encontrem pastos mais verdes. Se Paulo estivesse centrado em seu umbigo ministerial, jamais teria se preocupado com o bem-estar de Apolo. Há uma passagem que deixa bem patente esta característica nele:
“Além das coisas exteriores, há o que diariamente pesa sobre mim, o cuidado de todas as igrejas (...) Eu de muito boa vontade gastarei, e me deixarei gastar pelas vossas almas, ainda que, amando-vos cada vez mais, seja menos amado.” 2 Coríntios 11:28; 12:15
Como bom mentor, Paulo estava preocupado em trabalhar esta qualidade em seu pupilo. Jamais preocupou-se em puxar a brasa pra sua sardinha, mas preferiu espalhá-la para aquecer a todos à sua volta.

De onde provinha a confiança que Paulo tinha em Tito? Ele o acompanhara desde o início. Foi seu companheiro quando desceu à Jerusalém para apresentar-se aos outros apóstolos. O fato de Tito não ter sido obrigado a circuncidar-se, por ser grego, comprovava que o cristianismo não era uma mera continuidade do judaísmo, mas algo totalmente revolucionário. Tito, portanto, era a prova e a testemunha da subversão provocada pela Graça.

Confira o texto:
“Depois, passados quatorze anos, subi outra vez a Jerusalém com Barnabé, levando também comigo a Tito. E subi por causa de uma revelação, e lhes expus o evangelho que prego entre os gentios. Mas particularmente aos que pareciam ter maior destaque, para que de maneira alguma não corresse, ou não tivesse corrido em vão. Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se.” Gálatas 2:1-3
E não só isso! Paulo o considerava um filho. Veja a forma carinhosa com que o apóstolo se refere a ele na abertura da epístola que lhe fora endereçada: “A Tito, meu verdadeiro filho segundo a fé que nos é comum” (Tt.1:4a).

Apesar de todo o companheirismo entre eles, justamente na reta final de sua jornada, Paulo se vê sozinho. Onde está Tito, seu companheiro fiel? Não o traiu. Não lhe causou danos. Apenas o deixou na hora em que mais precisava. Paulo, então, apela a Timóteo, em busca de um ombro amigo.
“Procura vir ter comigo depressa. Porque Demas me abandonou, amando o presente século, e foi para Tessalônica, Crescente para a Galácia, Tito para a Dalmácia. Só Lucas está comigo. Toma a Marcos, e traze-o contigo, porque me é muito útil para o ministério. Quanto a Tíquico, enviei-o a Éfeso. Quando vieres traze a capa que deixei em Trôade, na casa de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos. Alexandre, o latoeiro, causou-me muitos males; o Senhor lhe pague segunda as suas obras.” 2 Timóteo 4:9-15
O velho apóstolo, já prestes a ser executado, se sente só, abandonado por aqueles a quem ele dedicara sua vida. Demas nunca mais o procurara, trocando a causa de Cristo pelo apego às coisas do mundo. Crescente foi para a Galácia. Tíquico fora enviado por Paulo a Éfeso. Alexandre foi o que lhe causou mais dor de cabeça. Só lhe restou Lucas. Mas de todos estes, quem mais lhe fazia falta, era, sem dúvida, Tito, seu filho amado. Quando não o encontrou em Trôade, saiu com tanta pressa de revê-lo, que acabou deixando pra trás sua capa e seus livros.

Acompanhado apenas de Lucas, o médico, Paulo pede que Timóteo venha, mas não venha só. Que traga consigo a Marcos, aquele mesmo que em outro episódio também lhe deixara, e contribuíra para o afastamento entre Paulo e Barnabé (At.15:36-39). Talvez o que Paulo realmente quisesse era evitar que Timóteo fizesse aquela longa viagem sozinho. Ele sabia o quanto doía estar só.

Como alguém que provocara o rompimento entre Paulo e Barnabé, poderia agora ser-lhe útil? A esta altura da vida, Paulo já tinha experiência suficiente para entender mais da natureza humana. Por isso, se dispusera a perdoar a Marcos, possibilitando que retornasse ao seu convívio, e servisse de companhia a Timóteo.

À medida que amadurecemos, damo-nos conta de que não adianta tentar monopolizar nossos relacionamentos. Aprendemos que nossos amigos necessitam outras companhias além da nossa. Porém, devo admitir que é mais fácil compartilhar bens materiais do que amizades.

Não confunda lealdade com exclusividade. Amizade é como o ar que respiramos; a gente jamais deve descartar, mas buscar reciclar constantemente, enquanto partilha com os demais.

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