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quarta-feira, novembro 25, 2015

Como deter a lama tóxica da corrupção



Por Hermes C. Fernandes

Será que ninguém se deu conta de que a maior tragédia ambiental de nossa história constitui-se numa metáfora perfeita de nossa condição moral e ética? Toda aquela lama tóxica fruto da ganância humana é a antítese do rio de Deus apresentado em Ezequiel 47. Enquanto o rio de Deus produz vida por onde passa (vv.8-9), a lama tóxica torna amargo o que antes era doce, destruindo por completo o ecossistema, exterminando espécies de peixes, desesperando milhares de pescadores e comprometendo o abastecimento de água de quase quatro milhões de pessoas.

Li em algum lugar que dias antes da tragédia, um pescador teria sido preso por estar pescando durante o tempo de desova dos peixes. Crime inafiançável, disseram. Então, o que deveríamos esperar que acontecesse a quem matou o rio inteiro? Inexplicavelmente, os responsáveis pela tragédia continuam soltos, enquanto a lama deságua no oceano depois de cruzar milhares de quilômetros sem ser detida.

Um pescador não tem valor algum aos olhos das autoridades. Prendê-lo é uma questão de ordem. Somente assim, outros seriam coibidos de praticarem o tal crime contra a natureza. Ninguém quis saber se ele não estava cometendo o tal delito para alimentar seus filhos. Mas uma empresa que lucra quase três bilhões de reais em um ano tem o seu valor. Quem vai querer mexer com ela? E os impostos que ela paga? E a receita que gera para o estado? E as propinas pagas aos fiscais? E a sua representação política no congresso?

Como será o Natal nas cidades que dependiam do Rio Doce? Quantas famílias perderam tudo na cidade de Mariana? Quem as ressarcirá? E quanto às vidas que se perderam no momento do rompimento da barragem? Como ressarci-las?

A mais tóxica das lamas é a corrupção. Ela jorra dos gabinetes dos palácios, flui entre os corredores do poder, e por fim, contamina deságua nas ruas, contaminando todo o tecido social.

As calhas por onde passa toda esta lama já está previamente delimitada. Criam-se leis e depois se inventam meios para dificultar o seu cumprimento.  Por exemplo:  a prefeitura  concede alvará para um estabelecimento sem que este ofereça estacionamento para os clientes. Sem alternativa, os clientes são obrigados a deixar seus automóveis na calçada próxima. Pronto. A armadilha está armada. A guarda municipal vai multar e rebocar o carro. A menos que se ofereça propina ao guarda. O governo exige a vistoria anual de todos os carros emplacados no Estado. Ao levá-lo para ser vistoriado depois de haver pagado um imposto altíssimo (IPVA), o funcionário do DETRAN condena seus pneus mesmo estando em ótimo estado. Ou você paga a propina exigida ou terá que voltar noutro dia com pneus novos.  Se cada funcionário cobrar 50,00 reais de propina e reprovar ao menos dez carros por dia, serão 500,00 reais diários. Se trabalhar 22 dias por mês, serão 11.000,00 reais de propina mensais. Se houver cinquenta funcionários no posto do DETRAN, serão 550.000,00 de propina por mês e 6.600.000,00 por ano. Quem vai querer construir uma barragem para impedir esta lama? Por que o Rio de Janeiro é o único Estado que exige vistoria dos veículos? Quem mais ganha com isso além dos funcionários? É lama para todo lado!

Então, por que ser honesto? Que sentido faz se esforçar para ser um cidadão de bem?  Até para tirar um lixo extra, o gari pede um por baixo. Um serviço gratuito acaba sendo cobrado. Uma “cervejinha aqui”, outro “agrado lá”, e a lama vai percorrendo seu caminho.

E isso começa em casa, quando prometemos aos filhos que lhes cobriremos de presentes se passarem de ano na escola, quando os ensinamos a comprar a simpatia da professora com uma ingênua maçã, quando os estimulamos a colarem na prova, quando roubamos o sinal de wi-fi do vizinho, quando pedimos que mintam dizendo ao cobrador que não estamos em casa, etc.

Ao chegarmos na igreja, ouvimos sermões que insinuam que Deus só nos abençoará mediante ofertas que fizemos. Ora, se o próprio Deus se deixa comprar, o que dirá os homens, não é mesmo?

Especialistas dizem que o estrago feito pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco precisará de ao menos cem anos para ser revertido. E o que dizer do estrago feito pela corrupção? De quanto tempo precisaremos para reverter isso?

Jesus diz que aquele rio visto por Ezequiel fluiria do interior daqueles que n’Ele cressem. Suas águas cristalinas são o antídoto para toda esta lama tóxica da corrupção. O problema é que enquanto a lama corre livremente sem que haja uma barragem capaz de detê-la, nós temos construído verdadeiras represas para impedir o fluir do rio da vida que jorra do nosso interior. Achamos mil desculpas para restringir nossa espiritualidade ao campo da subjetividade. Enquanto cantamos louvores a Deus, maquinamos um jeito de burlar as leis, de sonegar impostos, de nos locupletar da frouxidão das engrenagens da máquina pública.

Soube de um caso de um pastor que orientou a um membro de sua igreja a mentir para receber o seguro de seu caminhão que havia se envolvido em um acidente.  E o que dizer de líderes que negociam os votos do seu rebanho? E os que usam a igreja para lavar dinheiro sujo? Está tudo errado! O mundo não nos levará a sério enquanto formos coniventes com esta sem-vergonhice.

Pode até ser que a Samarco e a Vale do Rio Doce saiam ilesas disso tudo. Pode ser que o governo faça vistas grossas e se limite a aplicar uma multa irrisória. Porém, ninguém há que escape da justiça divina. Todos teremos que prestar contas ao Juiz de toda a terra. O que foi feito debaixo dos panos será finalmente trago à luz. O que foi colocado dentro da cueca e das meias será exposto. Nenhuma explicação poderá convencer ao tribunal divino de nossa inocência. Portanto, resta-nos o arrependimento e uma mudança drástica de rumo.

Se preferir manter sua alma etiquetada, não se atreva a falar mal do governo em nenhuma instância. Tire o argueiro de seu olho para ter condição moral de apontar o cisco que há no olho de outrem.

Que o Senhor aja com misericórdia para conosco, dando-nos a oportunidade de repensar nossos caminhos e mudar nossa postura. Ainda há tempo. Só não se sabe até quando...

Um comentário:

  1. Graça e paz! Bispo, faz todo sentido o paralelo traçado entre a tragédia e a corrupção. Texto sensacional! O que mais me assusta é que quando a postagem é sobre sexualidade aparece um monte de gente enviando outros ao inferno mas quando o assunto pode mexer com as estruturas das próximas gerações ou ainda quem sabe transformar, pelo menos, nossa casa, ou vai... Pelo menos nosso ser... Aí nos calamos. Ninguém comenta. Deus tenha misericórdia de nós. Ôpa! Mas espera aí: seria o silêncio nos comentários um paralelo à nossa espiritualidade? Só temos dedos para apontar aos "moralmente" pecadores? Vai saber... Abraço, Fabio

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