Por Hermes C. Fernandes
Um dos argumentos mais usados por cristãos que defendem uma postura de intolerância para com os adeptos de diferentes credos se baseia numa das falas mais incompreendidas de Jesus. Confira
o que Ele diz:
“Não penseis que vim trazer
paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim trazer divisão entre o
homem e seu pai, entre a filha e sua mãe, entre a nora e sua sogra. Assim, os
inimigos do homem serão os seus próprios familiares.” Mateus 10:34-36
O que
Jesus quis dizer com isso, afinal? Era de se esperar que uma passagem como esta causasse confusão na mente de muitos cristãos sinceros. Principalmente daqueles que a pinçam de seu contexto, atribuindo-lhe um sentido alheio ao que Jesus intentou dar.
Ora,
se Ele disse que bem-aventurados são os pacificadores, por que agora se contradiria afirmando que Ele mesmo teria vindo trazer discórdia em vez de paz? E o
pior é que isso teria como cenário a família. Quão destoante parece esta afirmação de tudo o que ouvimos dos lábios de Jesus.
Afinal
de contas, aonde é
que Ele queria chegar com uma declaração como essa?
Quando
o médico prescreve um remédio para o seu paciente, sua intenção é de curá-lo. Que
médico prescreveria um veneno? Porém todo remédio tem efeitos colaterais.
Basta checar a bula do remédio para verificar os efeitos indesejáveis que o
mesmo provoca. Se parássemos para ler algumas dessas bulas, jamais nos
automedicaríamos, como é costume de muitos. Há remédios que provocam insônia,
enjoo, taquicardia, e outras sensações que preferiríamos evitar. Porém o médico não
vai deixar de prescrevê-los por conta disso. O que lhe
importa é que seu paciente seja curado, à despeito dos efeitos imediatos inevitáveis, e ainda que a médio ou longo prazo.
A paz
oferecida por Cristo funciona mais ou menos como uma vacina, que uma vez
ministrada provoca reações no organismo, semelhantes àquelas do vírus que
intenta combater. E é exatamente aí que reside a eficácia da vacina, pois
estimula a reação dos anticorpos, provocando assim a cura do organismo.
Algo
semelhante ocorreu quando aquelas duas mulheres vieram a Salomão disputando um
recém-nascido. Cada uma dizia que o filho era seu. Como o sábio rei equacionou
o problema? Ordenando que se lhe trouxessem uma espada, e repartissem a criança
em dois, dando a metade para cada mulher. Aquela que preferiu abrir mão da
criança para poupar-lhe a vida revelou ser a verdadeira mãe. Alguém se
atreveria a dizer que a intenção de Salomão era dividir a criança ao meio?
Com
tal declaração, Jesus estava deixando Seus discípulos de sobreaviso. O fato de
segui-lo, abraçando a Sua mensagem revolucionária, provocaria efeitos colaterais momentâneos, que atingiriam
em cheio seus relacionamentos familiares. Porém este não seria o resultado
final.
Naquela
época, qualquer judeu que se convertesse à fé cristã era considerado traidor, e
por isso, corria o risco iminente de ser deserdado e sofre o espólio de seus bens.[1]
Poucos
versos antes nesta mesma passagem, Jesus disse: “Um
irmão entregará à morte outro irmão, e o pai ao filho; e os filhos se
levantarão contra os pais, e os matarão” (v.21).
Repare que isso, mais que uma simples previsão, foi uma prevenção. Em momento
algum Jesus estimulou desavença na família. Por conta disso, no afã de
estimular a Seus discípulos a se manterem fiéis naqueles tempos tempestuosos,
Jesus os conclamou a abrir mão de suas próprias vidas. Nem mesmo os vínculos familiares deveriam ser mais importante do que o comprometimento com a mensagem do reino de Deus.
“Quem ama o pai ou a mãe mais
do que a mim, não é digno de mim; quem ama o filho ou a filha mais do que a
mim, não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não vem após mim, não é
digno de mim. Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por
minha causa, achá-la-á.” Mateus 10:37-39
Observe
que tais desavenças familiares seriam os efeitos colaterais imediatos, e não os
efeitos permanentes da pregação do evangelho. Haveria perdas, porém, não seriam
definitivas. Perde-se agora, para ganhar depois. Portanto, a paz permanente pode
custar para nós um mal entendido provisório.
É claro que um familiar que ainda
não tenha passado pela mesma experiência com Deus, poderá se sentir temporariamente menosprezado. Ninguém quer ser preterido. O marido quer ser a pessoa mais importante
da vida da esposa, e quando se dá conta de que agora este lugar é ocupado por
Cristo, é natural que se sinta enciumado. O mesmo acontece na relação entre
pais e filhos. E até entre amigos. Porém esta sensação tende a diminuir à medida que o convertido
passa de demonstrar o amor de Cristo na maneira como conduz seus
relacionamentos. E assim, o prejuízo momentâneo resulta em ganhos permanentes.
Aos
poucos, os pais vão percebendo que seu filho, uma vez convertido a Cristo,
está se tornando num filho ainda melhor. O marido ficou mais atencioso. A esposa mais
carinhosa. Os pais mais amorosos e participativos. Paulatinamente, as
coisas vão se adequando, e a crise inicial vai cedendo à bonança.
Deixe-me ser incisivo: Não se
pode julgar um remédio pelos seus efeitos colaterais. O importante é o
resultado permanente.
Ao ser
questionado por Pedro por haver deixado tudo para segui-lo, Jesus lhe
respondeu:
“Em verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa,
ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou campos, por amor
de mim e do evangelho, que não receba cem vezes tanto, já no presente, em
casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições, e no mundo por
vir a vida eterna.” Marcos
10:29-30
Não se
trata aqui de uma promessa que só será cumprida na eternidade. Não! Começa “já
no presente”. E para que desfrutemos desta paz com as pessoas que estimamos,
temos que aprender a cultivá-la.
Voltando a um dos exemplos citados acima: se a esposa se converteu a Cristo, mas o marido não, isso poderá gerar
uma crise inicial no casamento. O marido talvez não compreenda o fato de que
agora Cristo seja a pessoa central da vida de sua esposa. Como reverter isso?
Ouçamos
o conselho de Pedro:
“Semelhantemente, vós, mulheres, sede submissas a vossos
próprios maridos, para que também, se alguns deles não obedecem à palavra, pelo
procedimento de suas mulheres sejam ganhos sem palavra.” 1 Pedro 3:1
Não
adianta argumentar, discutir, ou mesmo brigar, para tentar convencer o outro
acerca do evangelho. Deve-se, antes, ganhar pelo procedimento, sem a
necessidade de palavras. Este princípio pode ser aplicado a qualquer
relacionamento, e não apenas ao conjugal.
Nossas
boas obras devem preceder qualquer argumentação. Chegará o momento em que os argumentos
contrários cederão, e quem nos rebatia passará a pedir que lhe exponhamos a
razão de nosso procedimento. Pedro admoesta: “Estai sempre preparados para
responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança
que há em vós”.[2]
Se
quisermos cultivar a paz em nossos relacionamentos, principalmente com os que professam fés diferentes, temos que abrir mão de
termos sempre a razão. Na hora da discussão, a melhor saída é o silêncio. Todavia,
se nos pedirem qualquer explicação, devemos dá-la com mansidão, sem impor
nossos pontos de vista. Particularmente, não conheço ninguém que tenha se convertido no calor de uma discussão.
Deve-se,
também, evitar questões que produzam contendas. Paulo nos aconselha a rejeitar “as questões insensatas e absurdas,
sabendo que produzem contendas”. Pois, “ao servo do Senhor não convém
contender, mas sim ser brando para com todos”.[3]
Se levássemos
a sério tais instruções bíblicas, certamente evitaríamos a destruição de muitos
relacionamentos, inclusive entre pais e filhos. Não usemos, portanto, passagens
isoladas das Escrituras como justificativa para nossa intransigência.
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