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quarta-feira, junho 22, 2016

Os excluídos e a quebra de patente da graça



Por Hermes C. Fernandes

Os discípulos foram matriculados num curso intensivo que visava desintoxicá-los de todo tipo de preconceito, a começar pelo que nutriam contra os samaritanos, aquela raça mestiça detestada pelos judeus.

As duas primeiras lições já haviam sido ministradas. A primeira, através de uma parábola. A segunda, através da gratidão de um leproso curado. Mas, nenhuma lição foi tão radical quanto a aprendida à beira de um poço.

O texto parece insinuar que Jesus sentiu-se incomodado por sua popularidade ascendente. O comentário que chegara aos ouvidos dos religiosos era de que o sucesso alcançado por Jesus havia desbancado o ministério de seu primo João, e que o número de pessoas batizadas por seus discípulos ultrapassava em largo o de seu predecessor. Os discípulos devem ter ficado bem confusos quando Jesus resolve deixar aquela região e retornar para a Galileia, onde não gozava de tanta credibilidade e fama. Mais confusos ficaram quando lhes anunciou que era necessário passar por Samaria. A primeira experiência havia sido horrível. Os samaritanos negaram-se a hospedá-los. Como entender o que se passavam na cabeça de Jesus? Havia rotas alternativas, mas Ele insistia em passar por lá.

Quando chegaram numa cidade samaritana chamada Sicar, Jesus sentou-se junto a um poço para descansar, enquanto seus discípulos saíram em busca de comida. Era quase meio-dia, quando uma mulher samaritana se aproximou para tirar água. Sem qualquer cerimônia, Jesus se dirige a ela pedindo-lhe água. Percebendo que ele era judeu, ela questionou sua abordagem: “Como sendo tu judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?” Só o fato de ela ser mulher já se constituía num enorme tabu para aquela época. Homens não abordavam mulher estranhas publicamente. Mas nada pesava mais do que o fato de ser samaritana. Jesus, portanto, quebra dois tabus numa tacada só (Jo.4:1-30).

Todos conhecemos a direção que aquela conversa tomou. Jesus lhe oferece água viva. Mas ela não percebe que se tratava de uma figura de linguagem. A primeira coisa que faz é tentar descredenciá-lo. “Não me leve a mal, mas você não tem como tirar água deste poço fundo" (perdoe-me as paráfrases que usarei a partir deste ponto). Em seguida, ela acaba trazendo à baila questões nevrálgicas que alimentavam a hostilidade recíproca entre seus respectivos povos. A primeira delas era o fato de ambos terem um ancestral comum. “Você não está querendo dizer que é maior que o nosso pai Jacó, está? Foi ele que nos deu este poço!” Era como se ela dissesse: “Não me venha com este papo de que judeus têm o que os samaritanos não têm. Jacó não é pai só de vocês. Ele também é nosso pai! E quem você pensa que é para me oferecer algo que nem mesmo ele pôde dar?”

Jesus não entra na pilha dela. Seu propósito não é o de entrar numa queda de braços para ver quem é o dono da razão. Esse tipo de discussão jamais lhe apeteceu, e, sinceramente, não creio que Ele tenha mudado de lá para cá. Em vez disso, Ele avisa que o tipo de água que lhe oferecia era de natureza diferente daquela:“Qualquer que beber desta água tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede.” Sua dificuldade de abstrair a impede de entender a metáfora. Não sei se em tom irônico, ela responde: “Ok. Então, me dê logo desta água para que eu não precise mais ficar voltando aqui todo dia pra tirar água.” Sem se fazer de rogado, Jesus lhe faz um inusitado pedido: “Vai, chama o teu marido, e vem cá”. Meio sem graça, ela responde: “Agora, o Senhor me pegou. Não tenho marido!” Creio que ela deva ter pensado: “Ufa! Já estava começando a achar que ele era um profeta ou coisa parecida. Mas se ele desconhece meu estado civil, então, é apenas um estranho querendo jogar conversa fora. Ou talvez, esteja me testando para me passar uma cantada.” Para sua surpresa, Jesus respondeu: “Disseste bem: Não tenho marido; porque tiveste cinco maridos, e o que agora tens não é teu marido; isto disseste com verdade.”

Engana-se quem enxerga aí uma abordagem moralista, que visasse expor as fraquezas daquela mulher a fim de condená-la. Longe disso, a pretensão do Mestre era revelar a que tipo de sede Ele se propunha saciar. Sede que a levara a experimentar múltiplos relacionamentos, e que, naquele momento a envolvera numa relação adúltera. Não bastasse o fato de ser mulher e samaritana, ainda por cima tinha uma moral suspeita. Duvido que a comunidade local desconhecesse isso. Estar ali sentado em sua companhia era uma exposição e tanto para Jesus.

“Vejo que és profeta”, retrucou. Constrangida, ela tenta mudar o foco e o rumo da conversa. “Nossos pais adoraram neste monte, e vocês, judeus, vivem dizendo que o lugar certo para adorar a Deus é em Jerusalém.” Jesus não permitiu que a conversa descambasse nem para o moralismo estéril, tampouco para uma discussão teológica. “Mulher, acredite no que vou lhe dizer: está chegando a hora, e se quer mesmo saber, já chegou, em que o importante não é o lugar onde se adora a Deus, se no monte ou no templo em Jerusalém. Esta é uma questão que já deveria ter sido superada! O que importa para o Pai é ser adorado em espírito e em verdade.”

Uma das dificuldades que temos com certos segmentos da sociedade é que sempre trazemos à baila assuntos que já perderam sua relevância há tempos. Tornamo-nos um povo retrógrado, com uma agenda anacrônica e uma teologia que cheira à naftalina. Insistimos em responder a perguntas que deixaram de ser feitas há quinhentos anos. Ignoramos descobertas científicas, avanços sociais, contextos históricos, para impor nossa moral e nossos costumes, fechando-nos inteiramente ao diálogo. Nem sempre Deus está se importando com aquilo que nos tira o sono. “Deus é Espírito”, foi a resposta que Jesus deu à samaritana. Portanto, não queira rebaixá-lo a questiúnculas.

Impressionada, ela confessou-lhe: “Eu estou sabendo que quando o Messias vier, vai nos esclarecer sobre muita coisa”. Jesus respirou fundo, olhou à sua volta para conferir se não vinha ninguém, mirou-a nos olhos e disse: “Eu o sou, eu que falo contigo”. Foi a primeira vez que Jesus se declarou o Messias. E justamente a uma mulher samaritana. Os discípulos jamais haviam ouvido isso de seus lábios. Mas Ele não resistiu e acabou segredando àquela mulher a sua verdadeira identidade.

Recentemente, no episódio em que uma transexual encenou a crucificação em plena parada gay, alguém escreveu em meu perfil: Pai, perdoa-lhe, porque ela não sabe o que faz. Por alguma razão, aquilo me soou desconcertantemente presunçoso. Não resisti e escrevi embaixo: Pai, perdoa-nos, pois não sabemos o que dizemos. Talvez, aquela transexual soubesse mais o que estava fazendo do que nós o que temos dito. Não se escandalize ainda. Deus tem dessas coisas. Ele se revela a quem quer, e não precisa de nossa autorização para isso. Não detemos o copyright de Deus. E se quer mesmo saber, Ele já quebrou esta patente faz tempo, desde que Jesus disse que o vento sopra onde quer, e ninguém sabe de onde veio, nem para onde vai. Se quisermos ser co-partícipes do que Deus está fazendo, precisamos descer de nosso pedestal, abdicar de nossa presunção e admitir a sua atuação para muito além de nosso perímetro eclesiástico.

Quando os discípulos chegaram, flagraram-no papeando com a tal mulher. O texto afirma que eles ficaram estupefatos, porém, não se atreveram a questionar. A mulher, então, deixou de lado o seu cântaro e foi correndo à cidade espalhar entre os seus moradores a sua descoberta. Interessante notar que ela não demonstrou estar certa de nada acerca d’Aquele que se revelara o Cristo. O convite que fez aos seus concidadãos foi: “Venham e vejam um homem que me disse tudo quanto tenho feito. Será que ele não é o Cristo?” Resultado: a cidade inteira saiu ao encontro de Jesus.


O que move o mundo não são as respostas, mas as perguntas. Soa presunçoso demais apresentar-nos ao mundo como possuindo todas as respostas. É mais honesto dizer como ela, e admitir que ainda não sabemos de tudo quanto gostaríamos de saber. As pessoas se sentem bem mais à vontade seguindo quem tem as perguntas certas, do que quem afirma ter respostas para todas as questões. 

Há uma passagem onde Jesus ordena que dois de seus discípulos providenciassem um local para sua última ceia. Em vez de lhes dar um endereço certo, Ele s orienta a seguir um jovem que aparecesse nas ruas carregando um cântaro. Na porta por onde ele entrasse, eles deveriam se apresentar e dizer que seu mestre pretendia festejar a páscoa lá. Àquela época, era raríssimo flagrar um homem em atividades domésticas como aquela. Buscar água era atividade restrita às mulheres. Pois Deus usa um jovem que estava quebrando um tabu sexista para guiar os discípulos de Jesus ao lugar que lhes serviria de cenário não apenas para a santa ceia, mas também para a descida do Espírito Santo cerca de cinquenta dias depois. 

Continua em breve.

6 comentários:

  1. Paz, Bispo.

    Coerente e sensível como sempre.

    Ninguém discorda que os excluídos e marginalizados da sociedade sejam o foco do Evangelho e o motivo do amor de Deus. Qualquer que meramente leia a Bíblia, mesmo sem a exegese, é capaz de saber disso, ainda que prefira fazer vistas grossas ou não aceitar.

    Mas precisamos dizer todas as palavras quando falamos sobre esse assunto. Ser acolhido na Igreja é uma luta (se for igreja de maioria "classe média-alta então), mas isso é apenas um trato socializante, é ter ingresso franco num nicho social que se quer acolhedor, interessado e sincero.

    Mas isso é também marginal. O principal ainda é a conscientização do pecado e a salvação.

    Desse modo a pregação e o cuidado pastoral têm que ser integrais: cuidar dos reflexos sociais sem olvidar os espirituais, pois muitos que lêem suas reflexões podem usar as lentes amplas e entender que o mais importante é "ser aceito como parte disso", quando na verdade toda exemplificação que a Igreja dá com o trato ao marginalizado é uma figura e antecipação do Reino de Deus.

    Mas se não houver arrependimento ninguém entra nesse Reino. Verdade que Jesus e muitos profetas se enturmavam com os " proscritos" de suas épocas, os recebiam do jeito que estavam, mas NUNCA deram esperança de que, por exemplo, uma prostituta seria salva se continuasse a se prostituir, um ladrão a roubar, e por aí vai.

    Se o vosso foco for direcionado a pobres, desamparados, vítimas de abuso/preconceito enquanto tais, os quais são vítimas sociais e não necessariamente ostentadores de práticas taxadas na Bíblia como "pecado" (a palavra já está démodé?), então todos estamos contigo e nos esforçamos por transformar as nossas igrejas locais (a minha, por exemplo, distribui o sopão e cestas básicas, conserta roupas de asilos de velhinhas e faz doações de provisões ali - e o asilo é católico, não evangélico - também ajudamos um orfanato espírita e tal), mas onde atuamos em contexto não-evangélico, depois dos atos de amor sempre vem breves momentos de reflexão bíblica em que as pessoas têm a oportunidade de saber que precisam de um "vá e não peques mais" além do "vinde a mim, vos que estais...".

    Pelo menos é assim que minha igreja local atua: contexto de missão integral + conscientização do pecado para libertação espiritual, porque pensamos que apenas alimentar, dar agasalhos, abraçar e acolher, o Lions, Rotary e outros já fazem bem. Nosso diferencial é que não paramos nos bem-estares por visarmos também a vida futura.

    Que Deus te abençoe!

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    1. Paz mano!
      Percebi nessa tua colocação um vício de interpretação religioso.
      Há horas para ensinar o Evangelho, há tempo pra cada coisa.
      Jesus disse vai e não peques mais quando o caso era um adultério por exemplo, e esse conselho era próprio com aquele delito contra a vida, ou no caso do paralítico por exemplo, onde há uma conotação de que um caminho contra a vida, poderia fazê-lo amargar situação pior até... Mas tudo sem pretenção nem ameaça... Só conselho, sábio é quem tem ouvidos para ouvir.

      Agora Jesus também andou simplesmente fazendo bem, sem que isso viesse necessariamente acompanhado de um momento "crucial da pregação", afinal Evangelho não são frases(embora dele as frases falem), mas encarnação, ato.
      Ou seja, há sim momentos em que o ato generoso, gratuito, reverente, misericordioso e humilde é que são a grande pregação, ainda que nada se diga, o ato de misericórdia acolhimento e compaixão é uma poderosa pregação de Deus (como fruto em nós) aos demais homens. Vide o caso do cobrador de impostos Zaqueu... Jesus apenas esteve em sua casa tratando-o com toda generosidade, graça, bondade, dignidade, naturalidade, etc e isso resultou numa explosão de arrependimento nele... Ou seja, a mais poderosa pregação acontece quando o Evangelho vira em nós não palavras faladas, mas Carne e Sangue... Como Jesus alertou: Se vocês se amarem, aí creram que são Meus discípulos e Eu os enviei.

      Abraço Nemex1975

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    2. Paz Daniel!
      Eu não discordo de ti, tanto que minha Igreja Local faz muitas ações sociais à pessoas dentre as mais marginalizadas e sem visar proselitismo, embora haja os momentos de reflexão. Apenas ressalvo que apenas focar nisso não é suficiente, nem pode ser central. Penso que Jesus não ameaçava aos demais na maioria das vezes, mas ele inspirou o Apocalipse também... e por mais que se possa dar a esse livro uma Exegese alegórica, isso não afasta a existência atual do Inferno, nem de um futuro local de tormentas eternas num futuro previsto.

      Penso que focar no Amor de Cristo nos sirva de combustível para as missões, mas sem deixar de conscientizar aos beneficiados da situação em que vive (no seu devido tempo, claro, depois do socorro dado e nunca como condição para receber algo das missões) e da necessidade de mudança. O problema de quem só foco em atos é desmerecer o aspecto sobrenatural e mandamental dos vieses "graves e judiciosos" que o próprio Deus nunca abriu mão. Um viés não ofusca outro e em minha igreja procuramos e tentamos fazer missões que abranjam a todos e com brevidade, pois não sabemos se a pessoa terá uma outra chance de ser evangelizada quando for socialmente amparada.

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  2. Anônimo5:11 PM

    Muito bom esse seu texto, falou ao meu coração.
    Fidelis Paixão

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  3. Anônimo9:52 AM

    Ainda que eu falasse
    A língua dos homens
    E falasse a língua dos anjos
    Sem amor eu nada seria
    É só o amor! É só o amor
    Que conhece o que é verdade
    O amor é bom, não quer o mal
    Não sente inveja ou se envaidece

    Parabéns pastor,que jesto nobre e lindo!!!
    Isso é amor genuíno!!!
    UMA grande aula para pastores qe so pregam prosperidade financeira e acúmulo de riquezas,nada falam a respeito do amor ao próximo!
    Vc faz a diferença!!!
    Parabens e que Deus abençoe sua vida.

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  4. Anônimo1:34 PM

    Eu Hermes sou um excluído da religiosidade, não faço parte desse falso cristianismo, portanto me recuso aceitar esse falso evangelho da nova que não é evangelho, e sim apostasia que pregam e está dentro nas chamadas igrejas templos de paredes.
    Me recuso me chamar de evangélico, sou cristão, sigo Jesus Cristo e sua Palavra de vida eterna, não sigo homens amantes de si mesmos, avarentos, egoístas etc.

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