Por Hermes C. Fernandes
Ninguém imaginava que aquele era o seu discurso de despedida. Quarenta dias
após ter ressuscitado, Jesus se reunia pela última vez com o seus discípulos.
Suas instruções finais foram para que não se ausentassem da cidade até que
recebessem a capacitação dada pelo Espírito Santo para serem suas testemunhas.
Tão logo se cumprisse tal promessa, eles deveriam começar seu ministério por
Jerusalém, alcançando em seguida toda a região da Judeia, chegando, então, a
Samaria, e, finalmente, aos confins da terra (At.1:8).
De Jerusalém até os confins da terra havia perímetros intermediários, etapas
que não poderiam ser queimadas. Parecia sugerir que a lógica de Jesus partia de
um perímetro menor para um mais amplo. Porém, a inclusão de Samaria rompia tal
lógica. Imagine que Ele dissesse que nossa missão começaria no bairro, passando
para a cidade, depois o estado, o país, e, por fim, o mundo inteiro. Ficaria bem
mais razoável se Ele dissesse que a missão iniciada em Jerusalém deveria
alcançar a Judeia, depois todo o território de Israel, em seguida, o império romano e, então, o
restante do mundo. Por que incluir Samaria? O que haveria de especial lá?
Imagino que os discípulos tenham torcido o nariz ao ouvi-lo incluir os samaritanos na agenda do seu reino. Por séculos, judeus e samaritanos cultivaram uma animosidade recíproca. Quais
teriam sido os motivos que geraram tanta hostilidade?
Logo após a morte de Salomão, em cerca de 930 a.C., o reino de Israel se dividiu
em dois: o reino do norte e o reino do sul. O reino do norte reunia a maioria
das tribos (dez, ao todo) e manteve o nome “Israel”; porém, por haver perdido
Jerusalém, que ficava ao sul, elegeu Samaria como sua nova capital. Já o reino
do sul tinha seu território partilhado por duas tribos, a de Judá, de onde provinham os reis, e a de Benjamim, além da tribo de Levi, de onde provinham os sacerdotes, e que, por não ter direito às terras, dedicava-se inteiramente ao templo. Apesar de ter a minoria das tribos, tinha
a vantagem de manter Jerusalém como capital, bem como o templo erigido em seu
território. Devido a esta separação, os habitantes do reino do norte ficaram
impossibilitados de cultuar a Deus no santuário em Jerusalém, e tiveram que eleger
seu próprio lugar de adoração: o monte Gerizim, de onde Josué havia pronunciado a
bênção sobre o povo de Israel. Por conta disso, desenvolveram uma religiosidade
distinta. Em Samaria praticou-se bruxaria, adoração a deuses pagãos como
Moloque, Baal, entre outros importados das culturas babilônica, cananeia e
egípcia. Tudo isso fez com que o abismo entre eles aumentasse cada vez mais.
Como se não bastasse o sincretismo que se intensificou quando foram levados
cativos para a Assíria no ano 722 a.C., eles acabaram se mesclando com outros
povos, tornando-se num povo mestiço (algo inadmissível para os judeus da época). Enquanto isso, os judeus, ao sul,
mantiveram-se etnicamente puros e fiéis aos seus costumes. Para os judeus, os
samaritanos eram apóstatas, mestiços, de caráter duvidoso, traidores do plano
original de Deus, em suma, uma aberração, uma anomalia.
Nos tempos de Jesus, os samaritanos tinham suas próprias aldeias e cidades, sendo severamente hostilizados pelos judeus. Algumas atitudes extremadas começaram a ser tomadas pelos samaritanos no afã de afrontar seus desafetos. A gota d’água se deu quando Jesus
tinha por volta de 19 anos. De acordo com Flavio Josefo, historiador judeu, um samaritano
fanático invadiu o templo em Jerusalém com ossos humanos e os jogou no santo
lugar, num tentativa de profaná-lo. Para se ter uma ideia da gravidade de tal atitude, era como se houvesse sido lançada uma bomba no santuário judeu. Algo bem mais grave do que uma transexual encenando a crucificação de Cristo na parada gay. O ódio gerado por esta atitude foi tão
grande que, a partir daí, os rabinos pediam que cada judeu devoto, antes do pôr-do-sol, erguesse as mãos na direção de Samaria e amaldiçoasse os samaritanos
em nome do Deus de Abraão.
Por se sentirem excluídos, os samaritanos pagavam com a mesma moeda. O próprio
Jesus, sendo judeu, sentiu na pele esta hostilidade. Lucas nos relata um episódio em
que Jesus manifestou o firme propósito de ir a Jerusalém, mas como a viagem era
longa, decidiu pernoitar numa aldeia samaritana. Ele, então, enviou
mensageiros para preparar-lhe hospedagem. Quando os samaritanos
desconfiaram que Ele e seus discípulos estavam a caminho de Jerusalém,
recusaram-se a recebê-los. Dois dos seus discípulos mais chegados, Tiago e João,
vendo aquilo, compraram as dores de Jesus e deram-lhe uma inusitada sugestão:
“Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como
Elias também fez?” (Lc.9:51-56).
Repare que eles não tiraram aquilo do nada. Havia um precedente histórico.
Ninguém menos que o grande profeta Elias havia agido do mesmo jeito. Também é
interessante notar que Elias foi profeta justamente no reino do norte. Portanto,
aqueles discípulos achavam que deveriam tratá-los com o mesmo rigor com que Elias
os tratara séculos antes. Na opinião deles, só mesmo fogo vindo do céu poderia
liquidar de vez com aquela aberração étnica. Para sua surpresa, Jesus não apenas
recusou-se a acatar sua sugestão, como também os repreendeu: “Vós não sabeis
de que espírito sois. Porque o Filho do homem não veio para destruir as almas
dos homens, mas para salvá-las.”
Não queiramos comparar o modus operandi de Jesus com nenhum outro profeta que
tenha existido. Se insistirmos nisso, retroalimentaremos o preconceito e o ódio cultivados por séculos entre os mais diversos segmentos sociais.
Aquele episódio mostrou a Jesus o quão enfermos estavam seus discípulos. O
preconceito, seja de que natureza for, nada mais é do que uma enfermidade da
alma. Quem não se cura, acaba contagiando a outros. A partir daí, Jesus
deflagrou uma discreta, porém, eficiente terapia medicamentosa que visava
romper-lhes os seus grilhões.
A primeira dose do remédio foi-lhes ministrada através de uma parábola.
A oportunidade surgiu quando um certo doutor da lei, querendo dar uma saia
justa em Jesus, perguntou-lhe: “Mestre, que farei para herdar a vida
eterna?” Parecia uma pergunta sincera. Porém, Jesus sabia exatamente aonde
ele queria chegar. Ele devolveu-lhe a pergunta: “Que está escrito na lei?
Como lês?” Perceba que são duas perguntas distintas. A primeira tem caráter
objetivo. Trata-se da letra fria da lei. O que está escrito, está escrito. Não
há o que tirar, nem por. Mas, a segunda pergunta tem caráter subjetivo: Como
lês?
Não basta saber o que as Escrituras dizem sobre este ou aquele assunto.
Devemos nos perguntar “como” as temos lido. Pode-se usar textos isolados da
Bíblia para justificar qualquer coisa, desde estupro até genocídio. Tudo vai
depender de como a lemos. Há quem a leia para justificar seus preconceitos, suas
opiniões, sua ideologia. Experimente lê-la contra si mesmo em vez de contra o
seu próximo. Deixemos que ela nos confronte antes mesmo de nos confortar. Leiamos a partir de Jesus e não de nossos pressupostos.
A resposta dada pelo doutor da lei foi corretíssima. Ele citou de cor os dois
principais mandamentos: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo. O assunto estava encerrado. A resposta estava ali, na ponta da língua.
Bastava que ele cumprisse os mandamentos. “Ele, porém, querendo justificar-se
a si mesmo, disse a Jesus: E quem é o meu próximo?” (Lc.10:25-37). Em outras
palavras, com quem eu realmente devo me importar? A quem tenho a obrigação de
amar?
Jesus nunca foi dado a respostas prontas. Ele prefere recorrer a metáforas e
parábolas. Assim, Ele fala primeiro à imaginação, depois à razão.
Aproveitando a presença dos discípulos, Jesus começa a contar-lhes uma estorinha.
Descia um homem de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos de ladrões que o
despojaram, e espancando-o fugiram deixando-o quase morto. Por um acaso, descia
pelo mesmo caminho certo sacerdote, que vendo-o naquelas condições, passou
direto, sem se importar. Em seguida, vinha um levita (membro de uma das tribos do sul), que ao
vê-lo, preferiu se distanciar. Nenhum dos dois se deu o trabalho de acudir o
pobre coitado. Nem o profissional do altar, nem o membro da tradicional tribo do
sul. Mas, de repente, surge um terceiro elemento. Ao introduzi-lo na história,
toda a audiência arregalou os olhos. Um samaritano ia de viagem, e quando o viu,
aproximou-se, compadeceu-se, prestou-lhe os primeiros socorros, colocou-o sobre
sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, pagou adiantado sua hospedagem e
ainda pediu que lhe dessem todo o cuidado necessário, porque quando voltasse de
viagem acertaria com eles.
Aquela parábola era uma provocação. Desde quando um samaritano agiria dessa
maneira, com mais amor e compaixão do que um sacerdote ou um levita puro-sangue?
Se aquele doutor da lei quisesse herdar a vida eterna, teria que tomar aquele
pária como referência.
Os discípulos devem ter ficado com uma pulga atrás da orelha. Não fazia muito
tempo eles foram praticamente expulsos de uma aldeia samaritana, e, agora, Jesus
contava uma estória em que o herói era ninguém mesmo que um samaritano. Não
teria sido melhor se ele fosse o ladrão da parábola?
Pouco tempo depois, Jesus lhes ministrou a segunda dose do remédio
anti-preconceito. Mas, dessa feita, não seria uma parábola, mas um fato real,
testemunhado por cada um deles.
Havia tantos trajetos que Jesus podia pegar para Jerusalém. Mas,
propositadamente, Ele preferia pegar aquele que os fizesse passar por Samaria.
Era como se Ele não houvesse aprendido ainda a lição. Numa dessas vezes, passando pelo
meio de Samaria, “saíram-lhe ao encontro dez homens leprosos, os quais
pararam de longe; e levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia
de nós. E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes”
(Lc.17:11-18).
Aqueles leprosos não se atreveram a se aproximar de Jesus porque a lei os
impedia. Um passo além do permitido, eles deveriam ser apedrejados até
a morte. Jesus ordena que se apresentem aos sacerdotes. Enquanto caminhavam, a
lepra desapareceu de seus corpos. De acordo com o preceito, somente os sacerdotes
poderiam autorizá-los a voltar ao convívio social depois de constatar a sua
cura. Mas no meio do caminho, um deles resolveu voltar, pois se lembrou de que,
por ser samaritano, os sacerdotes não o receberiam no templo. Os outros nove
prosseguiram, pois eram judeus. Estando todos leprosos, não havia distinção
entre eles. Mas, uma vez curados, a distinção étnica veio à tona. Antes, eram
todos leprosos. Agora, eram nove judeus e um samaritano. Enquanto os noves se
dirigiam aos sacerdotes, aquele samaritano resolveu voltar a Jesus. A princípio,
alguém poderia achar que ele estava desobedecendo a uma instrução clara dada por
Jesus. Mas como ele poderia se dirigir aos sacerdotes sabendo que não seria
recebido? Da mesma maneira, quantos adorariam ir a uma igreja, mas não vão
porque sabem que serão rejeitados? Quantos 'sacerdotes' atuais se disporiam a acolher os diferentes, os excluídos, vítimas de nossos mais entranhados preconceitos? Algumas igrejas até se propõem a fazer trabalhos sociais e evangelísticos, visitando cadeias, cracolândias, bolsões de miséria, zonas de prostituição, mas não estão dispostas a receber em suas dependências elementos oriundos desses ambientes fétidos. Que procurem, então, uma igreja com o seu perfil! Daí surgirem igrejas dedicadas a certos segmentos geralmente abominados pelas demais. Triste constatação.
Quando aquele ex-leproso (mas não ex-samaritano) chegou a Jesus, prostrou-se
e o adorou em gratidão por sua cura. Ele não foi curado de sua condição de
samaritano. Não há e nunca haverá ex-samaritanos. Mas ele foi curado de sua
lepra. Assim como podemos ser curados de feridas abertas pelo preconceito.
Os nove obedeceram, mas não voltaram para agradecer. O samaritano desobedeceu
porque não era possível ser recebido no templo, mas voltou para agradecer. Nem
tudo se resume a obedecer ou desobedecer. A vida é mais complexa do que nosso
fundamentalismo nos permite perceber.
Continua em breve.
André, disse:
ResponderExcluirPrezado, a cerimônia em questão, como todos sabem, é uma prática comum na Igreja Católica. Sempre no período da Páscoa. Foi por isto que alguns ficaram incomodados. Para eles, não basta ser bom cristão, tem que usar o rótulo "evangélico". "Deixou" de parecer evangélico, já não serve. E depois gritam que placa de igreja não salva ninguém.
Parabéns pela coragem.
André pede para desconsiderar o comentário anterior. Acho que postei o artigo errado. Vou posta-lo no artigo apropriado. Grato.
ResponderExcluirAnálise irretocável. Hermes você tem nos ajudado a sermos mais cristão e menos fariseu. Continue com a queda do véu.
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