Por Hermes C. Fernandes
Quando as caravelas comandadas por Pedro Álvares Cabral
aportaram no Brasil, estima-se que aqui vivessem entre 3 e 4 milhões de
índios. Quinhentos anos depois, quando a
população brasileira beira 200 milhões, a população indígena gira em torno de míseros 550 mil, divididos em 225 povos e 180 línguas. Uma lástima. Praticamente dizimamos povos que habitaram as Américas por séculos, talvez milênios, antes de chegada dos europeus.
Inicialmente, nós os enganamos com nossos apetrechos. Eles
até acreditaram que éramos deuses. Depois, tentamos escravizá-los, mas eles, heroicamente, não
cederam. Sem saber, trouxemos doenças
para as quais eles não tinham anticorpos para resistir. Tachamos sua cultura de
demoníaca. Impusemos nossa fé pela catequese e pela espada. Incendiamos suas
aldeias. Estupramos suas mulheres. Tomamos suas terras. Apropriamo-nos de suas
riquezas naturais. E os poucos que restaram sofrem constante pressão para sejam assimilados por nossa sociedade consumista.
O que se poderia esperar?
Somos os invasores. Os usurpadores. Se ao menos os
respeitássemos, talvez a história fosse diferente.
A minha geração foi doutrinada ideologicamente pela sessão da tarde. Cresci assistindo a filmes de bang-bang em que, invariavelmente, os índios eram apresentados como vilões.
Nasci e cresci na igreja, e confesso que nunca ouvi um único sermão acerca deles. Para a igreja, eles
não passavam de um campo missionário. Nosso dever, portanto, era levar-lhes,
não apenas o evangelho, mas também os valores da civilização. Sentíamo-nos
realizados ao receber a visita de algum índio convertido trajando terno e
gravata.
Quem me ensinou a respeitar sua cultura foi um célebre ateu:
Darcy Ribeiro. Um antropólogo que deixou o conforto dos centros urbanos para viver entre eles. Em vez de
tentar mudá-los, Darcy procurou compreender seus costumes e explicá-los aos
‘civilizados’ da selva de pedra.
Já me deparei com pastores e missionários levantando
campanhas para distribuir bíblias e ‘roupas decentes’ às comunidades indígenas,
mas nunca encontrei entre eles quem defendesse seus direitos. Parece que, para isso, Deus conta mesmo é com os
ateus.
Será que as Escrituras nos oferecem alguma base que
respalde uma relação respeitosa com os índios?
Em Atos 28, lemos sobre o episódio em que Paulo e os
tripulantes de um navio sobreviveram a um naufrágio à caminho de Roma. Lucas, o autor do relato,
diz que estando já salvos, souberam que estavam numa ilha chamada Malta. “Os indígenas usaram conosco de não pouca
humanidade”, relata, “pois acenderam
uma fogueira e nos recolheram a todos por causa da chuva que caía, e por causa
do frio”(Atos 28:2).
É claro que os tais
“indígenas” nada tinham a ver com os nossos índios. Algumas traduções trazem
“nativos” em vez de “indígenas”. Mas, o fato é que aquela era uma população que
vivia às margens do restante da civilização. Em vez de demonstrarem
hostilidade, eles usaram de humanidade para com os forasteiros. Portanto, não
eram animais desprovidos de alma, como alguns religiosos alegavam acerca dos
índios, e posteriormente acerca dos negros. Tal alegação tinha como objetivo
justificar sua eventual conquista e escravização.
Os tais indígenas de
Malta acenderam uma fogueira para aquecer os náufragos. Concluímos daí que não eram selvagens. Dominar o fogo requer certa sofisticação. Aliás, de acordo
com alguns antropólogos, a cultura humana se desenvolveu a partir do momento em
que o homem aprendeu a fazer fogueiras. Proponho que tratemos a fogueira acesa
pelos habitantes de Malta como uma analogia da cultura humana.
Para que serve a
cultura? (Refiro-me a qualquer cultura, inclusive a indígena). Para tornar
menos traumática a estada humana na terra.
Desde que o mundo se
revelou hostil à presença humana, temos buscado meios de tornar o ambiente mais
acolhedor. Já que os espinhos e cardos são inevitáveis, é melhor que estejamos
preparados para enfrentá-los. Para tal, nada melhor do que estarmos juntos.
Surge aí a necessidade da linguagem. O acúmulo de experiências precisaria ser
repassado às próximas gerações. Surge, então, os desenhos rupestres, que mais
tarde dariam lugar à escrita. Para nos defender de espécies mais fortes,
criamos armas. Para nos proteger do frio, inventamos roupas e acendemos
fogueiras. Para garantir que a comida não se estragasse, aprendemos a salgá-la
e cozinhá-la. E na busca de um sentido para tudo, desenvolvemos a
espiritualidade.
Cada grupo humano
seguiu seu próprio caminho no desenvolvimento de sua cultura. Não há culturas
superiores às outras. Cada uma tem sua beleza, seus valores, suas idiossincrasias e vicissitudes.
Qualquer abordagem intercultural deve partir desta premissa.
Voltando ao texto bíblico, quando Paulo percebeu que aquela
fogueira fora acesa para prover-lhes algum conforto, levantou-se do lugar,
embrenhou-se pela mata em busca de gravetos para alimentar suas chamas (v.3).
Infelizmente, não foi esta a abordagem dos europeus com os
índios das Américas. Em vez de alimentar sua chama cultural, preferiram
extingui-la. Impérios como o dos incas e astecas foram pilhados. Uma
incomensurável riqueza cultural foi reduzida a nada. Algo parecido com o que o
Estado Islâmico está fazendo com os sítios arqueológicos do Oriente Médio em
nossos dias. Estátuas e edifícios de cinco mil anos estão sendo destruídos ante
o olhar escandalizado do mundo ocidental, como se nós não houvéssemos feito o
mesmo com as culturas pré-colombianas.
É claro que não podemos fazer vista grossa à malignidade
encontrada em qualquer cultura. Nenhuma delas está isenta disso.
O relato de Lucas afirma que enquanto Paulo alimentava
aquela chama, “uma víbora, fugindo do
calor, apegou-se-lhe à mão”. Ora, qualquer abordagem cultural que tenha o
respeito como ponto de partida enfrenta riscos iminentes. Mas, repare que aquela víbora não o atacou
enquanto ele se embrenhava na mata, e sim quando se pôs a lançar os gravetos no
fogo. É provável que ela tenha vindo entre os próprios gravetos. Paulo
simplesmente ignorou sua presença. Bastou que os feixes fossem lançados na
fogueira para que a víbora saltasse fugindo do calor e se apegasse à sua mão.
Assim como mordeu a Paulo, poderia ter mordido a qualquer
outro. Mas certamente o mordeu devido à sua proximidade da fogueira. Quanto
mais próximos da cultura, mais expostos estamos aos perigos que ela representa.
Nem sempre o mal é oriundo da cultura para a qual nos
propusemos ministrar. Às vezes, nós mesmos somos seus portadores, os
responsáveis por introduzi-lo, mesmo que nossa motivação seja a mais louvável
possível. Aqueles gravetos eram a contribuição particular que Paulo estava
dando à manutenção do fogo. Ele não podia supor que entre eles havia uma
víbora. Infelizmente, com os gravetos trazidos pela pregação do evangelho, também trouxemos nosso moralismo que por vezes beira ao legalismo fanático, além de nossos preconceitos e pressupostos.
Não bastasse estar exposto ao veneno da víbora, Paulo teve
que lidar com o julgamento precipitado daquele povo. Lucas nos conta que “quando os indígenas viram o réptil pendente
da mão dele, diziam uns aos outros: Certamente este homem é homicida, pois,
embora salvo do mar, a Justiça não o deixa viver” (v.4).
Semelhantemente,
quem quer que busque interagir com uma cultura diferente da sua poderá ser
censurado, tanto por seus pares, quanto pelos componentes daquele grupo. Nossas
motivações serão postas em xeque. Nossa abordagem será questionada.
Principalmente se, em algum momento, nossa fragilidade for exposta.
Paulo não se preocupou
em se defender ante a acusação de que seria um homicida foragido da justiça. Ele simplesmente
sacudiu a víbora, devolvendo-a ao fogo. Todos ficaram na expectativa de que a
qualquer momento ele caísse morto, pois sabiam que aquela víbora tinha veneno
mortífero. O tempo passou sem que ele apresentasse qualquer sintoma. Os mesmos
que o julgaram digno de morte passaram a acreditar que ele fosse um deus. Se
Paulo quisesse se aproveitar disso, se tornaria o rei daquela ilha.
Muitos europeus se
aproveitaram da superstição dos índios para se assenhorear deles como se fossem
deuses. Paulo tomou a direção inversa. Em vez disso, foi convidado a
hospedar-se na casa de Públio, o principal homem da ilha. Diferente dos
europeus que aportaram nas Américas, o apóstolo não requisitou as terras
descobertas para alguma coroa. Mas reconheceu em seu anfitrião o direito à
propriedade de boa parte delas.
O que nossos índios têm
reivindicado não é algum privilégio, mas o direito às terras de seus
ancestrais. “Não é a terra que
nos pertence! Nós que pertencemos a terra”, teria dito um deles. Tirar-lhes
isso é o mesmo que privar-lhes da vida. Desempossá-los de suas terras é cometer genocídio.
Reconhecer o seu direito a terra não é uma questão de
caridade, mas de justiça. Não estamos fazendo nenhum favor, mas tão-somente
devolvendo-lhes o que sempre lhes pertenceu. Nós somos os invasores aqui. Eles
são, por assim dizer, os verdadeiros brasileiros.
O texto sagrado diz que Paulo foi visitar o pai de Públio
que estava enfermo com febre e disenteria.
Não seria impróprio imaginar que aquela enfermidade tenha sido trazida
pelos próprios náufragos. Basta ler os versos que se sucedem para ver que ela se
espalhou rapidamente entre os moradores. Naquela época, ninguém imaginava que
algo assim poderia acontecer. Hoje, porém, sabemos que os europeus trouxeram
consigo doenças que ajudaram a dizimar a população indígena. O fato é que eles
não possuíam anticorpos para combater tais enfermidades. Mesmo desconhecendo tais fatos, Paulo toma para si a
responsabilidade e ministra sobre todos os enfermos da ilha, curando-os em nome
de Jesus.
O relato termina dizendo que os nativos abasteceram o navio
em que prosseguiriam viagem com todas as coisas que lhes seriam necessárias.
Se Paulo e os demais se houvessem aproveitado na ingenuidade
daquela gente, talvez a história não tivesse este desfecho.
O que impede certa interação entre culturas é o fato de umas
se acharem superiores às outras. Missionários deveriam ater-se a levar a boa
nova, sem bagagem cultural extra.
Em vez de ir a eles no afã de levar-lhes o que não têm, que
tal se fôssemos a eles em busca de algo que Deus confiou-lhes na edificação do
reino de Deus na terra? Trata-se, portanto, da quebra de um paradigma
missionário que têm se mantido por quase quinhentos anos. Não partimos do pressuposto de que nossa
cultura é superior à do outro e sim de que nossa cultura, por mais rica que
seja, não está completa. Por isso, recorremos ao outro na busca por sua
contribuição. Em cada cultura, Deus tem depositado uma riqueza única que deverá
ser introduzida na Sociedade Definitiva, aquela que se apresenta nas Escrituras
como a Nova Jerusalém, cumprindo assim a profecia que diz: “As tuas portas estarão
abertas de contínuo; nem de dia nem de noite se fecharão; para que te sejam
trazidas as riquezas das nações”(Is.60:11; Ap.21:24-26).
Quanta coisa poderíamos ter aprendido
com os astecas e incas se não os houvéssemos dizimado? Quanta coisa poderíamos
aprender com os tupis-guaranis se tão-somente descêssemos de nosso pedestal
cultural? Quanta riqueza Deus tem depositado entre esses povos e tantos outros
ao redor do globo, como esquimós no Ártico, os aborígenes no outback
australiano, os africanos, os ciganos espalhados pela Europa, etc.?
Semelhante a Paulo, nossa jornada
ainda não está completa. Talvez Deus até nos permita amargar o naufrágio de
nossa civilização para que nos abramos a acolher a contribuição de tais
culturas.
Abaixo, um poema que compus tempos atrás que aborda o paradigma colonialista que tem caracterizado muitas das investidas missionárias dos últimos quatro séculos.
Catequese
– Por Hermes C. Fernandes
Quanta pretensão a minha!
Achar que detinha
o monopólio da raça
Que estupidez a minha!
Pensar que eu vinha
com o portfólio da graça
Eu com catequese
Tu com hospitalidade
Um rio que não se represe
desafia minha vaidade
Eu, civilizado
Tu, selvagem
Eu, educado
Tu, à margem
Teu sorriso fez calar o meu sermão
Onde piso não há lama, não há chão
O meu siso já nasceu, dói mais não
Meu juízo se perdeu na razão
O que pensava te levar
Tu trouxeste a mim
O Deus que fui te apresentar
Surpreendeu-me enfim
Minhas roupas, meus costumes
Não parecem te atrair
Tu me poupas de queixumes
Te contentas com o que vir
Não bastasse a pretensão
de impor as minhas crenças
Além da religião
Também trago-lhe doenças
Pela fé no deus do império
Te escravizo, te anulo
Roubo todo teu minério
Te ironizo, te rotulo
Quem levaria a sério
interesse travestido de amor
Se em nome do Mistério
se explora até a dor?
Com a cruz que se estampa
tanto escudos e brasões
Se conquista, se acampa
tantos mundos e rincões
Se déssemos ouvidos
ao que diz nosso Senhor
Em vez de oprimidos,
gente livre em amor
Que vergonha, que vexame
Deus não está nas catedrais
E quem sonha, busque ou ame,
Vai encontrá-lo nos quintais
Seja em ocas, a relento
Em barracos de sapê
Na floresta ou assentamento
onde ninguém pode ver
Não te afrontes, te apresento
Nosso Rei e bem-querer
Achar que detinha
o monopólio da raça
Que estupidez a minha!
Pensar que eu vinha
com o portfólio da graça
Eu com catequese
Tu com hospitalidade
Um rio que não se represe
desafia minha vaidade
Eu, civilizado
Tu, selvagem
Eu, educado
Tu, à margem
Teu sorriso fez calar o meu sermão
Onde piso não há lama, não há chão
O meu siso já nasceu, dói mais não
Meu juízo se perdeu na razão
O que pensava te levar
Tu trouxeste a mim
O Deus que fui te apresentar
Surpreendeu-me enfim
Minhas roupas, meus costumes
Não parecem te atrair
Tu me poupas de queixumes
Te contentas com o que vir
Não bastasse a pretensão
de impor as minhas crenças
Além da religião
Também trago-lhe doenças
Pela fé no deus do império
Te escravizo, te anulo
Roubo todo teu minério
Te ironizo, te rotulo
Quem levaria a sério
interesse travestido de amor
Se em nome do Mistério
se explora até a dor?
Com a cruz que se estampa
tanto escudos e brasões
Se conquista, se acampa
tantos mundos e rincões
Se déssemos ouvidos
ao que diz nosso Senhor
Em vez de oprimidos,
gente livre em amor
Que vergonha, que vexame
Deus não está nas catedrais
E quem sonha, busque ou ame,
Vai encontrá-lo nos quintais
Seja em ocas, a relento
Em barracos de sapê
Na floresta ou assentamento
onde ninguém pode ver
Não te afrontes, te apresento
Nosso Rei e bem-querer
Hermes que mentira é esta aí que todo dia é dia de índio o que!
ResponderExcluirTodo dia é dia de " cultos,reuniões nas igrejas chamadas evangélicas e tem "cultos reuniões dos os horáros do dia, é dízimo e ofertas que não acabam mais.
Já enviar missionário para ter todo dia o dia do índio como vc diz que é falso essa informação , as igrejas se omitem, não gostam de enviar missionário porque que não dá lucro para as igrejas templos é só gastos na visão dos seus líderes avarentos, não dá status, holofotes para líderes evangélicos, enviar os missionários é gastos para igreja, o negócio lucrativo é o povo enxer, lotar os templos, aí é lucro certo para as igrejas, e seus líderes ri a atoa, entendeu o resultado que é esse cristianismo falso que pregam nas igrejas evangélicas?
Hermes o missionário, os profetas de Deus são totalmente mal vindo nos templos evangélicos, posso por isso a vida toda, pois sou missionário e meu sustento vem da minha aposentadoria, não vem um centavo de igrejas, vem por inclivel que pareça as pessoas ímpias me ajuda nas minhas necessidades quando preciso, nunca pedi nada a ninguém, eles que vem a miha pessoa oferecer ajuda.
Isto que é o papel para igreja fazer o que não faz, os ímpios estão fazendo, porque eles sentem que precisam ouvir a Palavra de Deus e estão cedentos em ouvir.
O Evangelho está tão misturado a cultura ocidental que é quase impossivel pregar o evangelho sem vestir o indigena.
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