Páginas

domingo, setembro 30, 2018

A Bíblia é a favor da TORTURA?



Por Hermes C. Fernandes

O uso da tortura é injustificável, levando-se em conta a dignidade humana. Se a crueldade com os animais é terminantemente proibida na Bíblia[1], quanto mais a crueldade contra seres humanos que são a imagem e semelhança de Deus.[2]

Ao ser esbofeteado por ordem do sumo sacerdote, Paulo declarou que dar um tapa em um prisioneiro antes da condenação sob o devido processo legal seria uma violação da lei.[3] Ora, se um simples tapa era contrário à lei, logo, impingir qualquer sofrimento a um ser humano antes que seja devidamente julgado e condenado deve ser considerado ilegal. E veja que não estou me referindo à violação dos direitos humanos, mas a infringir a lei do próprio Deus.  E convém salientar que a lei não se aplica somente ao “natural da terra”, mas também ao “estrangeiro que peregrina entre vós”, tendo em vista que há uma “mesma lei” para ambos.[4]

Nicodemos, o mestre fariseu, argumentou ante os seus pares que julgar um indivíduo ou uma multidão como inimigos do Estado sem que tenham sido condenados em um tribunal é contrário à lei.[5] Lançar mão do expediente da tortura para extrair informações de um suspeito é presumir que o indivíduo seja culpado sem o devido processo judicial a que ele tem direito.

De acordo com os princípios bíblicos que regulam os procedimentos numa guerra, um inimigo poderia ser morto em combate, mas se o conflito terminou, os prisioneiros não devem ser tratados de forma desumana. Um exemplo disso pode ser encontrado em  2 Reis 6:21-23:

“Quando o rei de Israel os viu, perguntou a Eliseu: "Devo feri-los, meu pai? Devo feri-los? "Ele respondeu: "Não! Costumas matar prisioneiros que capturas com a tua espada e o teu arco? Manda-lhes servir comida e bebida e deixa que voltem ao seu senhor". Então preparou-lhes um grande banquete e, terminando eles de comer e beber, mandou-os de volta para o seu senhor. Assim, as tropas da Síria pararam de invadir o território de Israel.”

Tal procedimento era adotado como regra, tanto no Antigo, quanto no Novo Testamento. Tanto Salomão, quanto Paulo vaticinam:

“Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; se tiver sede, dá-lhe água para beber. Assim fazendo, amontoarás brasas vivas sobre a cabeça dele, e o Senhor te recompensará.” Provérbios 25:21-22

 “Portanto, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas de fogo sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.” Romanos 12:20,21

“Amontoar brasas sobre a sua cabeça” aponta para o fato de que tratar o inimigo com gentileza e humanidade faria com que sua consciência se abrasasse, sensibilizando-o e constrangendo-o pelo amor. É neste mesmo sentido que Davi pede em seu famoso Salmo 23: “Prepara-me uma mesa na presença dos meus inimigos.” Engana-se quem pensa que Davi estivesse rendido a um espírito vingativo, almejando tripudiar sobre seus desafetos. Pelo contrário, o homem segundo o coração de Deus desejava partilhar seu próprio pão com aqueles que o odiavam. Ele não pretendia tortura-los ou coisa parecida, mas constrange-los com um gesto de amor e solidariedade.

Algo parecido com o que se vê no livro “Os Miseráveis” de Victor Hugo.[6] Jean Valjean, o protagonista do célebre romance, é um homem que vive uma situação de miserabilidade que leva-o ao crime. Depois de 19 anos de prisão (cinco por roubar um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos que estavam passando fome, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga) acaba sendo libertado. Marginalizado por todos que encontra por sua condição de ex-presidiário, ele acaba tendo que dormir nas ruas, mas é recebido na casa do benevolente Bispo Myriel. Em vez de se mostrar grato, Valjean  rouba-lhe os talheres de prata durante a noite e foge. Ao ser preso, é levado pelos policiais à presença do bispo para acareação. Em vez de confirmar o roubo, o bispo salva-o alegando que a prata encontrada com ele foi um presente e que ele havia se esquecido de dois castiçais de prata por causa de sua pressa. Após esta demonstração de bondade, o bispo recomenda que ele use a prata para tornar-se um homem honesto. Transformado, Jean Valjean reaparece no outro extremo da França, tornando-se em um próspero empresário, dono de uma fábrica, e um homem respeitado pela sua bondade e caridade. Eis um exemplo de um inimigo em cuja cabeça se amontoou brasas que consumiram o velho homem, fazendo-o renascer como uma renovada fênix.




[1] Gênesis 49.5-7; Provérbios 12.10
[2] Gênesis 9.6; Êxodo 6:.9; Salmos 71.4; 74.20
[3] Atos 23.3
[4] Êxodo 12.49
[5] João 7.47-53
[6] HUGO, Victor, Os miseráveis (Volume I: Fantine/ Livro sétimo: O Processo de Champmathieu/ XI. Champmathieu cada vez mais admirado). Lisboa: Editorial Minerva, 1962.

Nenhum comentário:

Postar um comentário